Liquidificultura

As Campineiras – “A Virgem do Cambuí”

por César Póvero
Publicado em 3 de dezembro de 2015


Esta história que conto agora, se trata das mais antigas aqui já publicadas, data de 1930. Talvez um pouco antes, talvez…

Norminha, nossa protagonista desta crônica antiga nasce no papel da mulher caçula disputando o espaço numa família de oito irmãos, entre homens e mulheres, foi ela a famosa raspa do tacho.

Ela já se lembra de sua vida ali num dos casarões da Avenida Julio de Mesquita, estudando no Colégio Cesário Mota , ou olhando da janela o movimento, casarões estes que foram desaparecendo, se alterando, sendo demolidos da noite para o dia. Numa família de homens bonitos altos e de olhos claros e mulheres sem graça com narizes grandes, enfim, não é desculpa, já que todas se casaram, menos Norminha.

Norminha fez o footing na Praça Carlos Gomes com irmãs e sobrinhas já adultas que quase alcançavam a tia em idade. Todos namoraram e se casaram. Norminha se apaixonou por um jogador do Guarani, não se sabe por que não deu certo, o único.

Nossa protagonista desde os primórdios se identificou com a limpeza da casa, sempre muito asseada mandava na irmã mais velha, confiscava os doces para que só fossem saboreados no fim de semana, então eram trancados dentro da cristaleira a olhos vistos. Mandava também a irmã mais velha vasculhar as gavetas da sobrinha que trabalhava para fora, tudo tinha que estar sob seu controle.

Norminha sempre foi quieta, mas por trás dos imensos olhos azuis não se sabia seus pensamentos, ardilosa, tramava, fofocava a vida de todos, e bisbilhotava tudo. A família se dissipou com todos já adultos e casados, o casarão da Julio foi vendido, os pais já falecidos e no dia da partilha no casarão, Norminha partiu com o baú de joias da família nas mãos, andando pelas ruas.

Ninguém peitou Norminha, todos a temiam, a caçula. Assim foi morar em um apartamento no Cambuí mesmo, na Rua Conceição com a sobrinha e o marido. A irmã mais velha havia morrido, sendo assim fez da sobrinha jovem que acabara de casar sua escrava. Com o passar dos anos, ambas com joelhos roxos de tanto tentar deixar o chão de cerâmica vermelha da cozinha um espelho.

Apesar de tudo, era engraçada e desbocada falando palavrões homéricos e cabeludos que os filhos das sobrinhas não conheciam. Eram muito famosas e temidas pelas crianças suas histórias sobrenaturais com a sobrinha submissa sempre de testemunha, porem sem nada balbuciar. Na hora do almoço, todos à mesa, ela em cima de uma cadeira limpando os vidros pós-fritura. No meio do ano, a famosa limpeza de fim de ano onde se lixava, polia, lustrava todo o apartamento de cabo a rabo por um semestre.

De carnes fartas e ancas largas adorava comer, principalmente doces, depois de falar mal da vida alheia, era seu prazer preferido, sabia de cor as receitas, mas reza a lenda que quem fazia tudo era a sobrinha, Norminha não sabia cozinhar. As joias tão bem guardadas viraram um banheiro novo.

Dizia ela que havia sido muito assediada, pelo sogro da sobrinha, pelos cunhados quando ainda era jovem, mas nada havia acontecido, as sobrinhas já eram senhoras, os filhos das sobrinhas crescidos, todos comentavam a possível virgindade de Norminha que vivera mergulhada numa planilha de normas e regras de vida. Quando adoeceu e o médico pediu exames, não chegou à saber o resultado, enquanto penteava com as unhas as franjas das toalhas impecavelmente passadas, uma sobre a outra, alvas e alinhadas uma a uma, caiu no chão assim que a sobrinha adentrava a porta com o resultado nas mãos.

Coração, nunca havia sentido nada no órgão do amor, mas ele parara de bater de medo da notícia da morte. Logo depois veio a confirmação do médico que vinha contar a sobrinha a virgindade da tia que já nos anos 90, aos setenta anos, para mais, mantinha seu hímen intacto como veio ao mundo. Sua sobrinha nunca mais se apegou a limpeza e as regras, seria uma vida sem normas… sem Norminha.

 

“Qualquer semelhança com campineiras reais é mera coincidência, esta crônica é uma obra de ficção”.

Créditos da foto:Avenida Júlio de Mesquita em 1920

Compartilhe

Newsletter:

© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74