Esta história se inicia lá na roça em Campinas, um pouco antes de 1940, tudo era verde, distante, pouco cimento. Ali no campo, longe da cidade, sua mãe teve os sete filhos, entre eles todos, dois não vingaram, senão seriam nove, era assim na época.
A mãe Jandira costurava em casa para tentar viver com dignidade e o marido trabalhava como farmacêutico numa pequena farmácia distante. Abigail que sempre sofreu por ter um nome estranho é a nossa “campineira” desta crônica, e sendo assim caçulinha da prole e com um pouco mais de um metro e meio de altura quando se tornou adulta.
Voltando a infância da protagonista….
Certa noite após sua mãe costureira entregar uma encomenda, uma mortalha, a veste da qual se entregava o defunto para fazer a partida, eis que surge a tal cliente falecida na beira da estrada exibindo a recente veste encomendada no que poderia se chamar de “corpo”. Somente sua mãe viu.
Logo na vizinhança conheceu um garoto dez anos mais velho, ele era obrigado a ser aquele que toma conta da caçula, já que ele brincava com os irmãos da menina, e os irmãos sempre sumiam nas brincadeiras e travessuras.
Nossa protagonista já mocinha foi para a “cidade” para estudar, após a morte do pai, moraram em vários bairros de Campinas em casas de aluguel, a prole cresceu e todos começaram a trabalhar. Assim puderam comprar uma casa ampla no bairro Bonfim, próxima a Rua Quintino Bocaiuva, depois de tantas residências, seria um bom fim para todos.
Abigail morava com todos os seis irmãos e a mãe, era muita gente! Ela se formou no magistério e passou num concurso de um famoso banco onde foi trabalhar. Acabou se casando com aquele amigo dos irmãos, que não gostava de cuidar da criança chata, no caso ela. Afinal ele era dez anos mais velho.
Aquele ano, eles todos definiram como o ano em que todos desencalharam, todos se casaram no mesmo ano, um atrás do outro, somente um já havia casado, o mais velho e o mais novo que bebia demais escondido que nunca se casou.
Parecia algo como o filme “Sete noivas para sete irmãos”. Abigail teve três filhas e continuou morando com a mãe e o irmão mais novo na mesma casa, os demais adquiriram seus lares.
Abigail, do signo de câncer sempre soube que no seu horóscopo as áreas profissionais favoráveis eram as artes e a saúde, mas ela não foi para as artes, pura necessidade de começar a trabalhar e passar em um concurso, um futuro garantido.
Um dos irmãos lhe ensinou a tocar violão, mas com a falta de prática acabou se esquecendo. Sempre levava as filhas ao teatro e ao circo e lá se lembrava de quando era pequena, seu sonho era fugir com o circo e viajar o mundo, sonhava que deveria ser muito divertido.
Abigail que não quis ser da área da saúde, achou que não teria estrutura para cuidar de doentes e acabou cuidando de sua mãe até os últimos segundos de vida em casa, também cuidou de um dos irmãos. Visitava e ajudava as vizinhas velhinhas doentes e que foram desaparecendo da rua.
Cuidou sem preconceito, nos anos 80, da jovem vizinha, mãe solteira, sem julgá-la como todos faziam, a apoiou na gravidez e nos cuidados com o bebê.
Como começou a trabalhar muito cedo, se aposentou bem nova. Então cuidou de duas cunhadas, do irmão mais novo que se tornou alcoólatra até o fim, cuidou do marido com Mal de Alzheimer, com a ajuda de um cuidador. Se curou de um tumor, se curou de uma longa depressão. Com as três filhas já casadas, Abigail vendeu a casa e comprou um apartamento de um quarto bem próximo a casa onde viveu a maior parte de sua vida.
Agora morando sozinha, sendo visitada pelas filhas, ela faz aulas de piano, aulas de desenho e pintura, fez aulas de teatro na faculdade da terceira idade.Uma pequena senhora das artes. A pequena notável, diz um sobrinho!
Abigail ainda espera que uma construtora derrube a casa que já estava muito velha para se manter e que ali se construa um edifício de apartamentos onde ela possa se mudar, ali onde tudo começou.
A história daquela que não se diz, pois nunca pensou em ser assim, foi tudo sem querer, a boa samaritana do Bonfim.Um bom lugar para viver os dias, ver a vida passar.
Uma casa onde ela sempre tinha uma cama para oferecer com roupas limpas, cobretores no frio, uma panela grande e fumegante nas refeições, uma palavra de consolo, uma casa cheia de luz, sempre repleta de burburinmhos e risos memso nos momentos tristes.
Desta forma ela recebia todos, os doentes, os saudáveis, os chatos, os legais, os amigos e amigas das filhas e os amigos dos amigos, os parentes distantes…
A boa samaritana fez da casa hospital, restaurante, pousada, capela quando tinha tardes de oração rezando o terço, buffet como cenário de uinúmeras festividades.
O fim é inevitável, um dia chega para todos, mas Abigail continua cheia de vida e saudável, católica fervorosa, as vezes vê vultos, pessoas que já se foram, assim como sua mãe, mas isso acontecia somente naquela casa de tantas vidas, tantas histórias.
O Bonfim é um bairro da Região Norte de Campinas no limite com as Regiões Central e Oeste, tendo ao norte o Jardim Chapadão, ao sul a Vila Teixeira, a leste ficam o Botafogo e o Terminal Multimodal de Campinas e a oeste fica o Jardim IV Centenário.
“ Qualquer semelhança com uma campineira real é mera coincidência, esta crônica é uma obra de ficção”.
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