
Recebi de minha irmã caçula, Stella, uma foto antiga de minha gata de três cores, caçadora. A foto analógica, tirada a partir de uma câmera Kodak 35mm, revela em baixíssima qualidade o flagrante de Sasha em uma de suas escapulidas para desbravar o mundo externo, seu habit natural. A cada retorno, ela trazia as refeições para suas crias. O cardápio variava de filhotinho de morcego a mariposas. A nossa relação com os bichos, pelo menos em minha casa, na década de oitenta, era um ir e vir. Chegavam da rua, comiam, dormiam e saiam de novo rumo à liberdade. Quantas vezes a Sasha retornou machucada; ou porque brigou com outros gatos; ou porque viveu uma noite feroz de acasalamento; ou porque simplesmente quem tinha passarinho em gaiolas, atirou no gato. Recordo-me de uma vez em que a Sasha chegou com um buraco de tiro entre a pata e a barriga. E não era comum levarmos a veterinários. Era impensável, impraticável. Cuidávamos de nossos bichos de forma caseira. Eles comiam o que nós comíamos, o que sobrava. Geralmente minha mãe cozinhava arroz com cascas de legumes. Acredito que ainda é assim por esse “brasilzão” afora.
A Sasha era meio estressada. Entrava no cio, engravidava, dava à Luz a uns sete, oito gatinhos. E aí, depois de dois meses, dávamos a maioria. Ficávamos com um ou dois. A Sasha se cansou de tanto parir, começou no primeiro cio. Então, lá pela terceira gravidez, largou os filhotes para o Dunga, de uma ninhada anterior, cuidar. Tadinho, ele ficava no ninho zelando pelos irmãozinhos, melhor que a progenitora. A Sasha estava estressada. Uma vez, ao voltar da rua, descansava no sofá. O Dunga e o Dingo, irmãozinho mais novo, não paravam de fazer estripulias. Ela rosnou algumas vezes desaprovando a bagunça, como não a obedeceram, minha gata pulou no meio dos dois e fez um “esparramo”; com medo, eles se esconderam. Até minha mãe, Cleifa, se assustou. Irritada, a Sasha saiu pela janela da sala e voltou somente tarde da noite, sem nenhuma caça como recompensa aos filhotes. Pouco antes de sumir de vez – acredito que tenha sido morta -, consegui arranjar dinheiro e a castrei. Minha gatinha de três cores, caçadora, ficou mais calma. A imagem de Sasha sentada à beira da porta do meu quarto é a derradeira. Eu gostava de ouvir música clássica enquanto limpava o quarto. Ela também. Não entendíamos nada, ainda não entendo, mas nos acalmava e nos transportava a lugares para além daquele quarto sem ao menos darmos um passo sequer.
Sim, a nossa relação com os animais, – não nos esqueçamos, também somos animais -, melhorou bastante apesar das incontáveis barbaridades que, infelizmente, acontecem porque não raro nos achamos superiores; que devemos ser servidos sempre; que tudo é feito para o nosso bel-prazer. Nós nos esquecemos do básico: “desfrutamos” da mesma finitude, semelhante brevidade; um piscar de olhos e já não existimos. Mas, sim, nossa convivência com nossos não semelhantes está mais próxima. Conversamos, nos acarinhamos com gatos, cachorros, periquitos, papagaios…, temos encontros marcados com eles. Todas as vezes que saio e, horas depois volto ao meu apartamento, lá estão os dois gatos me esperando na porta, miando de alegria. Quantas vezes acordo ao sentir uma patinha tocar meu rosto. É o Gattino me chamando para sair da cama. Ah, e quando isso acontece, é uma correria só. Brincamos de pega-pega e, vez ou outra, sobra uma mordida, um arranhão. Brigo, fico brava, pareço uma criança; logo passa após ele se enroscar em minhas pernas. Lição de casa número um: faça as pazes logo. Sabe quantas vezes a minha gatinha Pikachu me chama para vê-la comer? Eu perdi as contas. É um miado constante, insistente. Não adianta fingir que não estou ouvindo. Quando a Chuchu coloca as orelhinhas para trás é porque está perdendo a paciência, então, resignada, lá vou eu, sento-me ao lado dela e aí, sim, come satisfeita a ração. Lição de casa número dois: quem gosta de fazer uma refeição sozinha, não é mesmo?

Em tempos de vasculhar o baú das reminiscências, encontrei uma fotografia onde eu e minha irmã mais velha, Bernadete, posamos no meio da plantação de laranja no sítio de meu avô materno, Bepão. Nós duas descalças, descabeladas, suadas e, com a língua de fora, Negrinho, um dos muitos cachorros que tivemos. A foto foi tirada pelo fotógrafo da cidade, Indiana (interior de São Paulo), e da família, meu pai João Batista. Na década de 70, quando nos mudamos para Campinas, o Negrinho morreria atropelado em uma movimentada avenida. Meu pai saiu para trabalhar, o velho portão de madeira abriu e ele escapou farejando os passos de seu companheiro. Negrinho não estava acostumado com a realidade “violenta” de uma cidade grande. Sem recursos para levá-lo ao veterinário, minha mãe tentou de todas as maneiras salvá-lo, mas o Negrinho agonizou e morreu em casa.
Os anos se passaram, muitos outros bichos vieram, partiram e nossa relação com eles tornou-se mais cuidadosa, mais afetiva. Penso que é uma maneira de evoluir, de exercitar o respeito a tudo e a todos. Digo sempre a mim mesma: “Se não cuidarmos com carinho de nossos ‘bichos’; se não regarmos nossos jardins, nossos canteiros; se não pararmos, não nos distanciarmos da agitação interior para contemplar o pôr de sol, o anoitecer; se não conseguirmos sentir o prazer do cheiro da chuva; do vento tocando nossos rostos, nossos cabelos; vamos achar normal quaisquer atrocidades, quaisquer joelhos a tirar o ar de uma pessoa, até à morte, apesar dessa pessoa implorar por respirar”.
Newsletter:
© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74