No fim de março, assustados, começamos a nos recolher às nossas casas e apartamentos (quem os têm, claro) para nos esconder do Novo Coronavírus, este sempre com apreço por qualquer um que se dispuser a recebê-lo em seu lar, seu organismo. Passados mais de 60 dias, a vida cotidiana parece se esquecer do “inimigo” que permanece à espreita, muito em razão das incansáveis falácias decretadas pelo presidente Jair Bolsonaro e seu séquito. As contaminações continuam assim como as mortes. Para os que estão distantes da realidade, as fotografias aéreas das covas abertas, algumas coletivas, parecem ser imagens de ficção. Não são! As pessoas que perderam algum familiar ou amigo para essa doença são a prova viva desse drama longe do fim.
No Brasil, desde o início da pandemia, assistimos a um polarizado estado de coisas, ora o que a imprensa nos revela e ora o que o governo federal tenta nos empurrar goela abaixo. Eu fico arrasada, não porque sou melhor que ninguém, mas por me colocar no lugar do meu semelhante; quando vejo o desespero daqueles que não encontram socorro por que não há “pronto-socorro” suficiente e equipado para atender a tanta gente doente de Covid-19, ou na aflitiva espera pelos exames. É fundamental respeitar a dor alheia para que não nos percamos na frieza.
Eu me recordo de quando comecei na carreira de jornalista, em um determinado período desses meus mais de 30 anos de profissão, quando acontecia um acidente a pergunta era: “Quantos morreram?”. Bem, lamentavelmente, se fosse um, dois, a resposta era: “Não vale!” Isso sempre me incomodou porque uma ou duas pessoas que morriam impactava na vida de duas ou mais famílias. Depois, com o advento avassalador das redes sociais, dos celulares apontados para tudo o que acontecia em busca dos “15 minutos de fama”, entrou em cena o “vale tudo”, numa competição com o que era postado no WhatsApp, no Facebook, no Instagram. A “régua”; com que se media a importância da notícia; ficou maior e mais flexível.
Bem, vou retornar à fotografia dos dias atuais. Não há como competir com a imagem captada numa fração de segundos. Não é o antes; não é o depois; é “…o instante preciso e transitório…”, fixado para sempre, como disse Henri Cartier-Bresson, fotógrafo francês. Ainda que saibamos que é um recorte pessoal, um ponto de vista; está ali, congelado, o drama desestruturador de milhares de vidas. Nem assim representantes do governo federal, e o próprio presidente, deixam de minimizar as mortes. Na verdade, nem sequer falam delas, com respeito; não as personalizam. É uma falta de empatia, uma frieza assustadora, para dizer o mínimo, pois não encontro outra definição.

Recentemente reli “O Mito da Caverna”, de Platão; leitura que recomendo. O texto faz parte do livro “A República”, escrito pelo filósofo grego no século IV a.C. Platão narra a vida de homens acorrentados, desde a infância, numa caverna. Sentados em cadeiras, sem poder se mexer, nem mesmo para os lados, só conseguem ver as sombras projetadas na parede. Eles não se sabem prisioneiros, só conhecem aquela maneira de viver. Acima deles existe uma passagem, um muro e uma fogueira. Por trás desse muro circulam pessoas carregando, acima do muro, objetos de figuras diversas, marionetes. Enquanto andam, alguns conversam. Em outro ponto, em direção à saída, estão os “Amos da Caverna”. Eles são os responsáveis por manter seus semelhantes acorrentados e se divertem com isso, com as conversas de seus “experimentos”. Até que em determinado momento, um dos prisioneiros começa a se incomodar, se questionar e consegue escapar. Ele escala o solo íngreme. Após muita luta, quedas, chega à saída. A luz forte do sol o cega momentaneamente afinal ele estava acostumado apenas com as sombras. Aos poucos passa a ver o mundo, a vida, a verdade. Mas ele não pode ser feliz sabendo que seus semelhantes permanecem no mundo das sombras, das ilusões, alienados. Então ele retorna mesmo após conseguir a liberdade. Voltar à prisão para contar aos outros sobre a existência de vida além daquele buraco, seria, digamos, o ponto alto do que é ser um político. Acima de seu bem está o bem de todos.

Essa, para mim, é a essência do “ser político”. O bem comum. E o bem comum não passa por um discurso de “salvador da pátria”. Não, a nossa história já provou que “salvador da pátria” só salva a si e aos seus. Acabar com os “Amos da Caverna” que se divertem com a ignorância da maioria para tirar vantagem disso, é essencial. Só dessa maneira começamos a estreitar o criminoso abismo social existente no Brasil. A subida é íngreme. A primeira corrente a romper é a da ignorância.
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