Liquidificultura

“Amor & Dor” – primeira parte de três

por César Póvero
Publicado em 5 de setembro de 2013

Só poderia ser ali, dentro de um cartão postal, num cenário paradisíaco, uma praia quase que virtual, sim, pois era ali o habitat natural do Amor. A paisagem diária que ele apreciava em seu dia a dia era a areia alva e as águas mais azuis que poderiam existir. Além da sinfonia das águas que se jogavam nas pedras fazendo parte da rotina diária, assim como o som das gaivotas que rasgavam o céu.

Para o Amor tudo isso bastava para que ele respirasse felicidade em demasia suprema. Para ele não existia o tédio, nem o medo. A crueldade nunca havia passado diante de seus olhos, muito menos a fome. Pois tudo o que vislumbrava de bom ou nem tão bom assim, alimentava de certa forma a sua alma.

Nem é preciso dizer o quanto o Amor era belo em seu corpo esguio e esbelto, sua beleza de deus grego, poderia ferir qualquer um com pouca autoestima. Mas em sua essência de Amor verdadeiro, ele era puro e desprovido de pretensões, ostentações ou orgulho.

O Amor caminhava como sempre pela areia fofa que acariciava seus pés nus. Foi num desses passeios, onde nada podia abalar sua vida inconscientemente solitária, que ele deparou-se com uma jovem. Ela estava cabisbaixa, provavelmente com algum mal estar, encolhida com seus cabelos longos e volumosos emaranhados cobrindo todo rosto.

Ele a abordou perguntando por seu nome, ela nem mesmo se dignou a olhá-lo, ele insistiu, até que por entre as madeixas surgiu um meio olhar deprimido que o encarou e logo se ocultou novamente. Como sempre cheio de paciência, ele insistiu por saber o nome da jovem, sem perder a doçura da voz e do olhar. Com muito custo, do meio da floresta soturna de cabelos embaraçados veio um sussurro se identificando como Dor, sim, esse era seu nome.

O Amor sempre meigo e com palavras sábias e reconfortantes foi cada vez mais, fazendo com que a Dor lentamente desencurvasse o corpo e o rosto. Como era peculiar, o Amor sabia conquistar a confiança e fazer com que todos se abrissem, se entregassem, confiassem nele, perdessem a vergonha. 

Muito que lentamente o dia foi passando, a tarde foi caindo e quando a luz do sol já havia se recolhido quase que por completo, dando lugar a luz da lua, a Dor lentamente revelou seu rosto e se pôs de pé.

O Amor havia feito um trabalho de tecelão e agora via tecido o bom resultado. A Dor estava diante de si, ela não tinha quase beleza, se comparada ao Amor, era esquálida, pálida, sua expressão era de grande pesar, o que a fazia ainda menos interessante aos olhos. Mas o Amor a enxergava tão diferente, todo aquele sofrimento e queixume para ele, eram belos e atraentes.

Após o Amor dizer tudo o que via de belo na Dor, ela já parecia bem mais leve, já esboçava certo sorriso tímido, aos poucos ia ajeitando os cabelos e tornando a espinha ereta. A Dor em seu intimo, não se conformava como alguém tão belo e atraente poderia desperdiçar o dia todo com alguém tão desinteressante como ela.

O Amor sempre tão curioso queria saber com detalhes, a qualquer custo, por que a Dor sofria intensamente. Neste momento ela esclareceu sua visão do mundo. Ela havia chegado ali trazida pelo mar da melancolia. Havia conhecido a ira do mar revolto que jogara seu corpo contra as rochas. Havia ficado a deriva em meio ao oceano por dias, sendo castigada pelo sol torturador, o calor efusivo e a água salgada. Cercada pelos perigos do mar, durante noites frias em que a chuva quase congelara seu corpo frágil, porém resistente. As aves e os peixes famintos, por várias vezes haviam a escolhido como alimento, achando que ela já estivesse morta.

O Amor em estado de choque, não se conformava como coisas tão belas da natureza poderiam ser tão perigosas e agora passava a encarar a vida de forma mais amena e realista. Ao mesmo tempo fazia questão de destacar o lado bom de tudo aquilo que lhe causou sofrimento. Sendo assim a Dor suavizava seu pessimismo.

O que o Amor e a Dor não haviam notado era o quanto a temperatura caíra desde o princípio do encontro. Tratava-se do choque entre os opostos, o Amor e a Dor. A temperatura caia cada vez mais, e mais do que nunca eles eram obrigados a ficarem cada vez mais próximos para sentirem um mínimo de calor no decorrer da madrugada. A partir deste momento, Amor e Dor se conheceram.

Quando o sol raiou, o Amor já não era mais tão inocente em sua felicidade cega e plena, assim como a Dor já não sofria tão intensamente vendo apenas o sofrimento em tudo. Na manhã seguinte o Amor e a Dor deram as mãos e decidiram conhecer o mundo.

Fim da primeira parte, continua…

 

Créditos: Salvador Dali.

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