Mais uma vez acontece o polêmico debate sobre o que é mais importante: se a razão ou a fé. Desta vez no palco do Teatro Castro Mendes, em Campinas, de 17 a 19 de março, protagonizado por dois pesos pesados do pensamento e da cultura ocidental: de um lado, o psicanalista Sigmund Freud (1856-1939), encarnado por Odilon Wagner, e, de outro, o teólogo cristão C.S. Lewis (1898-1963), encarnado por Cláudio Fontana.
O ponto de partida de “A Última Sessão de Freud”, peça de Mark St. Germain baseada no livro “Deus em Questão”, de Armand M. Nicholi Jr., é um encontro entre o psicanalista e o teólogo. Freud queria investigar Lewis para descobrir os motivos que o levaram a tornar-se um cristão convicto. Tudo se passa no dia que a Inglaterra declara guerra à Alemanha nazista. E é nesse contexto que Freud chama Lewis para uma conversa em seu gabinete, na Inglaterra, em plena segunda guerra mundial, no ano de 1939. Lewis era um aguerrido defensor da fé, e tinha lançado um livro criticando e ridicularizando Freud.
Trava-se um embate verbal sobre a existência de Deus e sobre a proeminência da racionalidade à luz da ciência, mas o entrechoque verbal acaba se estendendo por outros terrenos relevantes do comportamento humano, como a guerra, o sexo e o medo da morte.
Freud e suas razões
Sigmund Freud, neurologista e psiquiatra austríaco, é o criador da psicanálise, e trouxe temas como a sexualidade e o inconsciente para o centro da cultura ocidental dos últimos 120 anos. Filho de pais judeus, é a personalidade mais influente da história no campo da psicologia.
Conhecida como ciência do inconsciente, a psicanálise é um modo particular de tratamento da neurose, da psicose e de outros distúrbios mentais, realizado através da investigação terapêutica da subjetividade humana. Para isso, utiliza teorias que se ocupam da estrutura e funcionamento da mente e dos seus processos inconscientes.
Segundo Freud, a Psicanálise pode ser compreendida através de três aspectos: primeiro, como um método científico de investigação do psiquismo e seu funcionamento. Segundo, como um sistema teórico sobre a vivência e o comportamento humano. E, por fim, como um método de tratamento caracterizado pela aplicação da técnica da associação livre e da transferência.
Já Freud acreditava que a libido era a energia motivacional primária da vida humana. Ele propôs uma nova compreensão do ser humano, como um animal dotado de razão imperfeita e influenciado por seus desejos e sentimentos. Nessa perspectiva, segundo Freud, Deus existe porque o ser humano assim o deseja.
Lewis e sua fé
Lewis, irlandês, autor do clássico “As Crônicas De Nárnia”, foi um professor universitário, escritor, romancista, poeta, crítico literário, ensaísta e teólogo irlandês. De família anglicana, tinha o escritor J. R. R. Tolkien, autor de “O Senhor dos Anéis”, como amigo pessoal. Para Lewis, existe uma moralidade comum conhecida em toda a humanidade, que ele denomina de “lei natural, e afirma que deve haver alguém ou algo superior por trás de um conjunto tão universal de princípios: Deus. Em “As Crônicas de Nárnia”, ele descreve essa moralidade universal como “magia profunda.”
De onde eles partem
Freud, da razão, capacidade da mente humana que permite chegar a conclusões a partir de suposições ou premissas, e que é um dos meios pelo qual os seres humanos propõem razões ou explicações para causa e efeito. A razão, desta forma, é considerada pelos racionalistas como a forma mais viável de descobrir o que é verdadeiro ou melhor, e é nessa linha de raciocínio que se fundo o que atualmente entendemos como ciência, o esforço humano para descobrir e aumentar o conhecimento de como o universo funciona através de juntar evidências baseadas na observação sistemática e controlada, e analisá-las com o uso da lógica e da razão. Com a razão, acredita-se, é possível identificar e operar conceitos abstratamente, resolver problemas, encontrar coerência ou contradição entre eles e, assim, provar racionalmente a existência ou inexistência de qualquer coisa, inclusive Deus. Com base nisso tudo e em mais algumas coisinhas, Freud estruturou seu pensamento, seus argumentos e a psicanálise.
Lewis, por sua vez, parte da sua fé, por onde adere incondicionalmente a uma hipótese que considera como sendo uma verdade, para a qual não precisa de qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação racional, pela absoluta confiança que se deposita nesta ideia ou fonte de transmissão. A sua fé acompanha absoluta abstinência de dúvida mesmo com o antagonismo deste fenômeno psicológico em relação à lógica conceitual. Seu sentimento não se sustenta em evidências, provas ou entendimento racional, e, portanto, suas alegações baseadas em fé não são reconhecidas por Freud ou pela ciência como parâmetro legítimo para o reconhecimento da verdade de seu postulado.
Historicamente, a ciência tem tido uma relação complexa com a religião. Doutrinas religiosas por vezes influenciaram o desenvolvimento científico, enquanto o conhecimento científico tem surtido efeitos sobre crenças religiosas. Ciência e religião lidam com aspectos fundamentalmente distintos da experiência humana, e desta forma, quando cada uma delas permanece em seu próprio domínio, elas podem coexistir de maneira pacífica.
Podemos lembrar de Galileu, que foi pressionado a se retratar diante do tribunal da Inquisição dizendo que era falsa a ideia de que a Terra girava em torno do seu eixo e em torno do Sol. A postura impositiva da Igreja, o pensamento de que ela deveria ser quem determina a verdade, também acerca da natureza, foi a causa de muitas polêmicas no início da era moderna.
Por outro lado, naquele mesmo período, tem-se a figura de Santo Agostinho, que compreendeu que o conhecimento da verdade mundana se daria por meio da razão ou filosofia, enquanto a fé ofereceria o conhecimento necessário para aproximar a humanidade de seu criador – o que deve ser livre pra quem assim conceba. Sendo assim, ele coloca a fé e a razão num único plano, o de procura da verdade.
Nesse tempo tão radical e de destruição da opinião contrária, “A Última Sessão de Freud” é uma lição sobre a possibilidade de discutir com o oposto, sem extremismos, radicalismos ou cancelamentos, um exercício pouco usual atualmente. Ao espectador, no teatro e na vida, é dado entender que não é preciso escolher lados, e sim entender que pontos de vista diferentes são apenas formas diversas de se de ver o mundo – e que, sim, é possível a coexistência harmônica e tolerante entre ciência e religião, assim como entre tudo que é diferente.
Como lidar com tudo isso? Psicanálise, terapia, autoconhecimento – algo assim.
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VAGNER COUTO, psicanalista, realiza seu trabalho terapêutico tendo por base uma profunda escuta empática. Não ortodoxo ou sectário, tem um olhar pluralista em sua prática clínica. Assessor acadêmico do CEFAS, Escola de Psicanálise, já criou e coordenou a realização de mais de 100 eventos psicanalíticos e de saúde mental junto às principais instituições destas áreas no país, tendo trabalhado com pessoas como José Ângelo Gaiarsa, Marta Suplicy, Rubem Alves, Paulo Gaudêncio, Vera Lamanno e Roosevelt Cassorla. Tem profunda vivência em práticas holísticas de saúde mental em instituições como Brahma Kumaris, Fundação Peirópolis e Laboratório de Práticas Dialógicas. Tem 27 anos de experiência como conselheiro em instituição dedicada ao autoconhecimento, à expansão da consciência e à espiritualidade. É autor dos livros “Admirável momento novo” e “A estrela da manhã”. Jardineiro e poeta, ama plantar árvores e cuidar delas.
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