Atire a primeira pedra quem nunca se irritou porque o telefone celular levou dez segundos a mais que o habitual para abrir um aplicativo. Ou que, no trânsito, não tenha tamborilado nervosamente os dedos no volante do carro ao esperar pela passagem dos “intermináveis” 50 segundos do sinal vermelho. Estas e outras atitudes tornaram-se frequentes na vida da maioria das pessoas, especialmente aquelas que vivem nos grandes centros urbanos. Por causa da nossa relação cada vez mais submissa e impaciente com o tempo, surgiram alguns movimentos em escala mundial com o objetivo de fazer com que reduzamos o nosso ritmo e aproveitemos melhor o que a vida tem a oferecer. Um deles é o Slow Food, que nasceu na Itália na década de 1980 e chegou ao Brasil 20 anos depois. Seu objetivo: fazer oposição ao avanço da cultura do fast food.
Quem introduziu o Slow Food no Brasil foi a chef Margarida Nogueira, no ano 2000, depois de uma viagem à Itália, onde conheceu o fundador do movimento, o jornalista Carlo Petrini. Atualmente, o Slow está presente em cerca de 160 países e soma perto de 100 mil sócios. Em terras brasilis, existem 59 convívios, como são chamados os grupos de adeptos, que agregam ao todo 1.000 associados. “O Slow Food tem uma filosofia baseada em três pilares: bom, limpo e justo. Ou seja, defendemos a valorização do sabor, do aroma e dos alimentos cujas matérias primas e métodos de produção respeitem o meio ambiente”, explica o publicitário Caio Bonamigo Dorigon, conselheiro do Slow Food Brasil e do Slow Food Youth Network.
Também está na gênese do movimento, acrescenta Dorigon, a promoção da justiça social, por meio da remuneração adequada, principalmente dos pequenos produtores. “O produtor cumpre papel fundamental ao utilizar seus conhecimentos e tradições para atingir um nível de qualidade condizente dos alimentos”, justifica. O Slow estimula, ainda, seus adeptos a se abrirem a novas experiências alimentares, de modo a valorizar a biodiversidade local. “Incentivamos as pessoas a fazer uma reeducação alimentar, ao despertá-las para sabores que não podem ser encontrados nas prateleiras dos supermercados”, explica.
Como o próprio nome indica, o Slow Food conclama, ainda, as pessoas a fazerem suas refeições sem pressa. A proposta é aproveitar de maneira mais efetiva o momento à mesa, preferencialmente na companhia de amigos e parentes. Não por caso, o símbolo do movimento é um caracol, molusco conhecido por se deslocar lentamente. “Comer devagar é fator de saúde e de ampliação do prazer de se alimentar”, assegura Dorigon. Convencer as pessoas dessas vantagens, porém, não tem sido uma tarefa fácil. Por causa do açodamento dos clientes, alguns restaurantes brasileiros que trabalham com o sistema à la carte decidiram registrar em seus cardápios o tempo de preparo dos pratos, para evitar reclamação.
Proprietário do restaurante de culinária japonesa Kaizen, de Campinas (SP), Eduardo Kiko Katecare não colocou o recado no cardápio, mas ele próprio e seus garçons costumam ir às mesas para alertar os clientes que optam pelo menu degustação da casa, que é composto por seis etapas, sobre o tempo necessário para apreciar as iguarias. “Principalmente no almoço, explicamos que a experiência leva pelo menos uma hora para ser completada. Assim, quem não puder dispor desse tempo pode fazer outra escolha”, conta o restaurateur. Mas por que, afinal, temos tanta pressa assim, até mesmo para o ato fundamental de comer?
Julicristie Machado de Oliveira, doutora em nutrição e saúde pública e professora da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, tem uma hipótese para explicar esse tipo de comportamento. “Acredito que houve uma mudança na temporalidade. Ela não é mais a mesma para o ato de comer, nem para o de cozinhar. Em certa medida, parece que o tempo dedicado a tais ações tão essenciais à vida é visto muitas vezes como perdido. A refeição se tornou mais rápida por conta da revolução industrial, pois era necessário direcionar o tempo para o trabalho e reduzir o tempo gasto ao comer. De lá para cá, parece que essa postura se radicalizou”, analisa.
No Brasil, segundo a cientista, apesar de também ter ocorrido essa aceleração, as pessoas ainda preservam, mais que em outros países, momentos de comensalidade, durante o qual ocorre a partilha da refeição no horário de almoço, quer seja em restaurantes, quer seja em refeitórios no local de trabalho. De todo modo, reconhece Julicristie, os que insistem em comer apressadamente estão sujeitos a terem a saúde e o bem-estar comprometidos. “Ao comer de forma rápida, as pessoas tendem a mastigar mal os alimentos e a ingerir calorias em excesso, o que pode favorecer o desenvolvimento da obesidade. Isso sem falar que, ao comermos muito depressa, encurtamos o convívio com parentes e amigos, o que traz prejuízos aos laços afetivos”, destaca.
Nesse sentido, Mário Roberto Maróstica Junior, doutor em ciência de alimentos e docente da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp, entende que o Slow Food presta um serviço relevante à sociedade, ao pregar, entre outros aspectos, que a refeição seja feita de modo mais lento. “A mastigação mais longa permite maior liberação de secreções que irão permitir melhor digestão e menor ingestão de alimentos, o que configura uma ferramenta contra o consumo excessivo de calorias”, pontua.
Levar a vida em ritmo frenético, continua o cientista, tende a aumentar a ansiedade, que por sua vez amplia o estresse a que todos estamos submetidos. “A combinação desses fatores alarga o risco do desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, como o diabetes e a hipertensão. Por isso o movimento Slow Food tem ganhado força no mundo”, considera Maróstica. Bem, se você chegou até o fim desta reportagem sem se desassossegar e sem olhar para o relógio uma única vez, fica o convite para dar sequência a esta experiência na sua próxima refeição. Curta o momento e bom apetite!
Texto publicado originalmente na Revista VidaBosch
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