Fiquei mexido logo cedo. Recorrentemente, tenho visto postagens no Facebook que me causam estranhamento – especialmente quando são feitas por pessoas que considero amigas. Fico pensando: “O que acontece? Por que estamos, um e outro, vendo de formas tão diferentes? Que afinidade real temos um com o outro se, em algo tão “elementar”, diferenciamos – ou, mesmo – divergimos?”
Bem… – vi compartilhado no Face um pequeno folheto que dizia assim: “No Brasil, artistas pensam que são pessoas importantes… Já precisei de médico, já precisei de professores, preciso de agricultores todos os dias, já precisei de mecânico, encanador, pedreiro e de muitas outras pessoas, mas eu nunca precisei de um artista!”
Logo abaixo, outro pequeno folheto, grudado, dizia: “Essa tive que postar. E aplaudir de pé!”
Arrepiei! Mesmo entendendo o rancor subliminar que impregnava o ânimo de quem fez a postagem original, e, também, suas motivações político-ideológicas fundamentalistas e generalizantes… – assim como, ainda, a identificação que tomou conta de quem compartilhou, quebrei uma rotina pessoal que cultuo com desvelo, que é de me calar ante o que considero repreensível, e comentei na postagem (e bem sei que estou indo muito além com isso que escrevo aqui)…
“Não? Nunca precisou ouvir música? Ou ver um filme ou uma peça teatral? Nunca precisou ler um livro ou um poema? Ou contemplar uma pintura?”
E veio a resposta: “Claro que sim, amo a boa arte e todas elas. Me referi num contexto mais físico, e não intelectual ou espiritual.”
Bem… – eu ainda não me calo: “Mais físico? Não consigo entender isso muito bem. Posso imaginar palhaços numa festa infantil, um organista numa cerimônia de casamento, um coral numa igreja, uma banda numa festa de aniversário… – além de tudo a que já fiz referência – todos trazendo sensibilização, integração, alegria… Desculpe, querida amiga, mas estranhei – e ainda estranho. O post que você replicou ‘ingenuamente’ traz um discurso reacionário que, a meu ver, não combina com o que eu acho que conheço de você.”
Nos calamos.
Aí eu penso: no momento atual do Brasil, que me recorda a Inquisição, em que a censura, o recolhimento de livros e obras de arte e a agressão a professores está tomando ares de normalidade, onde – nas mais diversas áreas da sociedade – imperfeitos com imperfeições próprias pretendem dizer qual imperfeição é melhor ou pior, e o que devemos ver, fazer ou entender, pretendendo calar o senso crítico em nome de estereotipações e generalizações rasas e preconceituosas, em favor dos pensamentos calados e complacentes – precisamos, mesmo! – pensar, sentir e discernir.
Estereótipo
Estereótipo é o conceito ou imagem preconcebida, padronizada e generalizada sobre alguém, utilizado para rotular distinções quanto a aparência, origem e modo de ser ou pensar.
Com isso se alimenta o “nós e eles”, e se arruma argumentos para piadas ou segregações contra pretos, loiras, gays, nordestinos, pobres, judeus, mulheres, são paulinos, venezuelanos, artistas e afins. Que pretendem justificar ataques à arte, à filosofia, à educação crítica e à cultura reflexiva como formas não úteis de ser ou de estar na vida, improdutivas e dispensáveis. E que reforçam a discriminação, o preconceito, a segregação, o distanciamento, a marginalização, o antagonismo, a separação, o afastamento e a desunião.
Identificação
Já a “identificação”, segundo Freud, é a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva de alguém a uma coisa ou pessoa, em que o Eu tem origem sempre num laço identificatório inconsciente com o Outro, a partir do qual se torna capaz de construir uma identidade com quem se está em relação.
Nossas identificações apontam sobre como elementos vindos do Outro nos afetam. Podemos introjetar (trazer para dentro de si), projetar (expulsar para fora de si) ou transformar em nossos ideais os traços, valores e pensamentos que encontramos no outro.
Em “Psicologia das massas e análise do Eu”, Freud afirma que podemos nos identificar com um Outro – um líder, por exemplo – ao querer ser como ele ou ao reproduzir os valores que são os dele – e que os tornamos nossos. É, de alguma forma, um processo de canibalização, em que incorporamos os objetos que desejamos e validamos, numa espécie de “afeição devoradora”, em que não apenas reproduzimos (compartilhamos) aquilo com que nos identificamos, que não apenas se torna parte de nós, mas, também, se torna nós próprios.
Algumas identificações ocorrem pela adoção inconsciente de traços ou sintomas da pessoa, ou dos seus valores e modos de ver a vida, ensejando que toda identificação seja uma expressão de quem ou como realmente somos.
Gustave Le Bon corrobora esse pensamento de Freud com sua “Teoria do Contágio “. Quando, numa multidão, ou grupo, que pode ser fisicamente ou numa rede de comunicação ou de relações, o senso de uniformidade de comportamento enfraquece a responsabilidade individual por conta da pressão do comportamento coletivo, é como se o grupo fosse uma entidade única que devora a individualidade.
Ele aponta a ausência de senso crítico como uma das características das multidões, afirmando que elas exercem uma influência hipnótica sobre seus membros, os quais abandonam sua responsabilidade individual – se despersonalizando, e cedem às emoções ou valores contagiosos da massa. Assim, a multidão assume vida própria, cooptando valores e conduzindo pessoas para a irracionalidade, a uniformidade e a indiferenciação.
Pra tudo isso, ofereço esse olhar e esse riso enigmáticos da Monalisa – na ilustração.
COMO LIDAR COM TUDO ISSO? Psicanálise, terapia, autoconhecimento – algo assim.
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Vagner Couto, psicanalista, com especialização em Psicoterapia Psicanalítica Breve, aperfeiçoamento em Psicoterapia Psicanalítica de Casais e formação em Psicoterapia Energética Corporal, tem mais de 40 anos de vivência em instituição dedicada ao autoconhecimento, à expansão da consciência e à espiritualidade. Poeta e escritor, é autor dos livros “Admirável momento novo” e “A estrela da manhã”. Jardineiro, ama cultivar pessoas e cuidar delas.
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