Consoantes Reticentes…

“A Hora Mais Escura” e a polêmica da tortura

por Marcelo Sguassábia
Publicado em 13 de março de 2013

O que era para ser um dos grandes sucessos da temporada de prêmios do cinema norte-americano, acabou tornando-se uma grande dor de cabeça para a diretora Kathryn Bigelow. Recém-saída do sucesso do filme “Guerra ao Terror” (2008), que lhe concedeu um inédito Oscar de melhor direção, sendo a primeira mulher na história a conseguir esse feito, Bigelow envolve-se em um projeto que conta um dos grandes fatos ocorridos no século XXI, em uma história muito importante aos norte-americanos: a caçada ao terrorista Osama Bin Laden.

Projeto pronto, Bigelow começa recebendo vários elogios da crítica especializada, entretanto alguns setores da sociedade americana, principalmente políticos e agentes da CIA, os quais ela retrata no filme, argumentam que Kathryn incorre em alguns erros básicos em sua narrativa, principalmente em relação às cenas de tortura, algo nunca utilizado pela CIA para arrancar testemunhos de prisioneiros.

Até que ponto o público é tão ingênuo de acreditar que isso nunca foi utilizado? Prisioneiros sempre foram torturados em guerras e ninguém nunca se chocou quando isso foi apresentado em outros filmes de ação ou de guerra, muitas vezes em realidades históricas distorcidas. Até no Brasil e na América Latina, como um todo, sabemos que um dos expedientes, senão o maior deles, das ditaduras por aqui ocorridas, era utilizar-se da tortura para interrogar seus “prisioneiros”. Ao fazer um filme, contando esse tipo de história, não seria desonesto com o público omitir esse fato? Vide o bom exemplo do filme “Pra frente, Brasil” (1982) que mostra claramente os métodos dos torturadores da ditadura militar que assolou o Brasil.

Espero que fique claro que não estou endossando nenhum tipo de tortura e nem validando essas práticas, apenas tentando entender o porquê de tanta celeuma em relação às cenas do filme “A Hora Mais Escura”.

A maior diferença e talvez o que chocou o público norte-americano é que a tortura realizada no filme é cometida por aqueles que deveriam ser os heróis da história. Em uma cena emblemática e muito corajosa do filme é mostrado em uma TV uma entrevista com o presidente Barack Obama, logo no início do seu mandato, afirmando veemente que os EUA não cometem nenhum tipo de tortura com seus prisioneiros de “guerra”, fato este que é extremamente rechaçado com o que vimos logo no início do filme. A tortura existe sim, e é acobertada pelos altos escalões do governo norte-americano.

Se não bastasse essa confusão toda por causa da tortura que esses agentes empreendem, Kathryn também se viu envolvida em outra acusação: seu filme endossa a tortura ao colocar a personagem Maya (numa brilhante interpretação da atriz Jessica Chastain) abstendo-se de minimizar ou opor-se contra o jogo de sadismo empreendido pelo agente com o prisioneiro no início do filme.

Bigelow, em uma carta ao jornal Los Angeles Times, defende-se argumentando:

“Aqueles de nós que trabalham nas artes sabem que a descrição não é endosso. Se fosse, nenhum artista seria capaz de pintar práticas desumanas, nenhum autor poderia escrever sobre elas, e nenhum cineasta poderia aprofundar os assuntos espinhosos do nosso tempo”.

O filósofo esloveno Slajov Zizek, em sua coluna no The Guardian, no artigo Zero Dark Thirty: Hollywood’s gift to American Power, afirma que Kathryn endossa, sim, essa violência, estando do lado da normalização dessa cultura da tortura.

“Sem sombra de dúvida, ela está do lado da normalização da tortura. Quando Maya, a heroína do filme, testemunha pela primeira vez o “afogamento simulado”, ela está um pouco chocada, mas rapidamente aprende como as coisas funcionam; mais tarde no filme ela friamente chantageia um prisioneiro Árabe de alto-nível com, “Se você não falar com a gente, vamos entregá-lo à Israel”. A sua perseguição fanática por Bin Laden ajuda a neutralizar receios morais ordinários. Muito mais omisso é o seu companheiro, um jovem barbudo, agente da CIA que domina perfeitamente a arte de passar fluentemente da tortura à cordialidade quando a vitima desiste (acendendo o seu cigarro e contando piadas). Há algo profundamente perturbador em como, depois, ele muda de um torturador em jeans para um burocrata bem vestido de Washington. Isto é normalização na sua forma mais pura e eficiente – há um pequeno desconforto, que diz mais respeito à sensibilidade ferida do que à ética, mas o trabalho tem que ser feito”.

Sua indagação maior é: se a tortura sempre existiu porque agora se fala tão publicamente sobre ela? Para Zizek esse é o grande problema, sendo que a única resposta pertinente à essa questão seria que querem “normalizá-la, para baixar nossos padrões éticos”. Zizek ainda continua nos dizendo que essa normalização “é um sinal do vácuo moral do qual gradualmente nos aproximamos” .

São diversos pontos de vista que enriquecem ainda mais a narrativa do filme, sendo que quem está certo ou errado nessa história depende de qual argumento valide melhor nossas observações. Assistam ao filme e tirem suas próprias conclusões, pois, polêmicas à parte, “A Hora Mais Escura” é um dos filmes mais poderosos do ano. Trazendo à tona uma história atual, sendo que as feridas pós 11 de setembro ainda devem perdurar por muito tempo, é um filme intrinsecamente ligado ao seu tempo, que nos leva em uma jornada espetacular, cheia de tensão e que, de quebra, em meio ao balburdio da ação, faz-nos refletir.

 

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