Sete meses. Mais alguns dias, horas, minutos, segundos, com certeza. O tempo da ausência do badalar estridente do sino. Tempo em que o instrumento pendurado do lado de fora da cozinha não tocava na Casa de Todo Mundo. Casa do meu irmão Zé e minha cunhada Bila. O tocar o sino é a forma de dizer: “O almoço está pronto, está servido”. Eu senti saudades desse som que arde os ouvidos.
Desde o Natal não nos reuníamos aqui. A família toda não está presente, mas boa parte dela. Buzina para que o portão se abra. E quando ele se abre, lá vêm os cachorrinhos, os meus preferidos, Josh e Julie, requebrando até fazer xixi de alegria. Os anfitriões abrem os braços a nos receber. Que saudades! Quando o recolhimento nos isolou, deu-se uma eternidade até este instante. É bom demais rir das piadas, às vezes apelativas de meu irmão, que inventa uma atrás da outra. Petiscar, bebericar antes de comer comida, de fato. Gerações crescem em torno desse ritual. São acontecimentos simples e repletos de felicidades. Apenas percebemos esse prazer quando nos falta. Foi o que aconteceu. Senti pesar na ausência dos encontros aos domingos, a chegada, o acolhimento, as vozes em camadas, uma atropelando a outra, as risadas, o balançar na rede. Coisas banais tão importantes nos dão a dimensão de lugar no mundo, do aconchego, da certeza de que nesse ninho você pode se desarmar, confiar.
Ah, é saboroso sentar à mesa de madeira organizada com esmero pela minha cunhada. Cada um no seu lugar, o nome é o marco. Nos servir do feijão que enche a boca de água; o arroz, opa, o arroz, o vilão, ainda tem. É soltinho. Feijão e arroz.
A receita do bom convívio, do papo que vai e volta, dá rodopios, passa por diversos assuntos, dos mais bobos aos profundos, num átimo. Ao redor da mesa onde os alimentos são colocados, é um voltear engraçado, como abelhas no mel. Alimentamos nosso amor fraternal também através da comida. Olho a todos e sinto a imensidão dessa ternura da qual me alimentei por meses através das ligações cotidianas. Uma das lições da pandemia é essa: o que realmente vale a pena é o afeto incondicional. Você pode ser o que é, de verdade. Fora dos padrões de beleza, rimos dos nossos defeitos. Ninguém é perfeito. Falamos mal, falamos bem; mais ou menos. Das imperfeições, gargalhamos e lamentamos, ao mesmo tempo. Família! Não existe ex-família. Família é família, não é sagrada, é reunião, é espaço, é encontro de histórias de vidas vividas nos atropelos, nas quedas, nas perdas, no levantar-se, escorar-se, abraçar-se… Um palco para dessacralizarmos nossos monstros, nossos medos e dores. É o feijão com arroz, sabe? A isso dou o nome de amizade.
Gostaria de acrescentar um ingrediente acerca do quanto é bom viver perto daqueles que realmente se importam contigo. É uma carta que me veio à mente, escrita muito anos atrás. Meu irmão caçula, Carlos, estudava na Unicamp. Ele me mostrou emocionado a carta xerocada, datilografada, da simplesmente Clarice Lispector. Ela escreveu a Olga Borelli, amiga, secretária e biógrafa da escritora. Olga morreu em 2002. Clarice, em 1977. A carta é belíssima e me encantou na época, como me encanta hoje, pela humanidade, fraquezas expostas. Rio comigo mesma e reflito: “Nossa, como pode, a grande e fenomenal Clarice Lispector se desnudando na insegurança, na indecisão, na falta de rumo. Caramba, gente igual a gente.” Clarice segue escrevendo sobre suas fragilidades, ponto. Mas se abre para agradecer o melhor presente de aniversário que ganhou da amiga: “O Menino Jesus que parece uma criança alegre brincando no seu berço tosco.” Lembrei-me do Menino Jesus que minha mãe carregava com ternura e fé na procissão da noite de Natal, na Casa de Todo Mundo. Ela morreu em 2016. A procissão segue.
Outras pessoas, como eu, continuamos a levar o menino até sua manjedoura.
Mas, Clarice lembra que o maior presente que ela ganhou foi o aparecimento da amiga Olga “…numa hora difícil, de grande solidão.” Para quantas pessoas podemos dar tamanha declaração de amor, de gratidão? É isso que conta.
A pandemia, o reencontro com minha família, me deram novas perspectivas. Meu guarda-roupa fica cada vez mais magro. Minhas necessidades, mais minimalistas. Preciso de menos para continuar, mas preciso muito de quem compartilha sinceramente das minhas conquistas e derrotas. Essas pessoas são sopros de vida em nossa vida. Pessoas assim para dividir pequenos prazeres como Clarice dividiu, em sua carta, com Olga. A escritora conta de uma “…colônia da Coty, chamada Imprevisto.” Clarice Lispector relata com a maestria da escrita bela, delicada, cortante, profunda que o perfume barato “…serviu para me lembrar que o inesperado bom também acontece. E sempre que estou desanimada, ponho em mim o Imprevisto.”
O meu Imprevisto não guardo mais em meus armários, naquilo que a traça devora com voracidade. Ele está vivo na minha família, nos meus amigos sinceros, nos meus gatos. No pôr de sol que já não fotografo tanto. Prefiro testemunhar o vai e vem do sol; da noite. Noite… Dia… Faz parte, da minha, da nossa existência.
Fotos: Maria Angélica Pizzolatto
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