Na fábula clássica, a tartaruga consegue ganhar corrida contra o coelho; um lobo pode justificar o abate de um cordeiro imputando-lhe culpas que não correspondem à verdade; uma raposa desdenha a uva mentindo a si mesma ao dizer que estão verdes. O pressuposto dessas milenares peças literárias é, em geral, o absurdo e, o conteúdo, tem sempre um fundo moral.
Em “Yesterday” (Inglaterra, 2019), de Danny Boyle (em cartaz em Campinas), esses elementos fabulares se reúnem em uma história que obedece todos os trâmites a começar do pressuposto fantasioso: por doze segundos, o mundo sofreu um blecaute (espécie de bug do milênio anunciado para a passagem do ano 2000 e que não ocorreu).
Passado o colapso, aparentemente nada mudou porque as pessoas não percebem, mas, sim, aconteceu uma mudança substancial: alguns ícones da cultura pop não mais existem, foram apagados da memória coletiva. Entre eles, os Beatles. E, sem eles, na concepção de uma personagem, o mundo se tornou um pouquinho pior.
Na noite do blecaute, o jovem músico Jack (Himesh Patel) volta desiludido de bicicleta para casa prestes a desistir da carreira de cantor e compositor. Ao cruzar com um ônibus, sofre acidente e bate a cabeça. O choque lhe permite reter as informações apagadas.
Um dia, entre amigos, canta “Yesterday”, a famosa e bela canção de John Lennon e Paul MacCartney e ninguém a reconhece – antes, entendem que foi Jack quem a compôs.
Richard Curtis constrói habilmente um engenhoso roteiro incorporando os referidos elementos da fábula, não só no formato (a ilusão), mas, também na moral. “Eu faria isso?” A pergunta crucial que Jack se faz, ou seja, apropriar-se de uma obra que não é dele, norteia o filme.
A grande questão para um roteirista que mergulha nesse gênero de história é resolver o problema que ele próprio criou, o famoso “e agora?” Qual solução dar para o drama? Afinal, da noite para o dia, Jack se torna um astro, mas é correto seguir mentindo?
Há um momento em que Curtis chega a atenuar o drama porque se os Beatles foram esquecidos há algo errado no mundo – então Jack seria um bem por preservar a memória. São pegadinhas com as quais Jack se depara, frestas de um desvio ético – o famoso fins que justificam os meios.
No universo da fantasia, cabe também brincar com o real e o roteiro incorpora à narrativa o músico britânico Ed Sheeran, que vive ele próprio no filme. Aliás, brincando de realidade em uma ficção em tudo ilusória, Ed propõe a Jack um jogo que consiste em compor uma canção na hora e Jack mostra “The Long and Winding Road”. Sem chance para Ed Sheeran.
Danny Boyle trabalha no tom do cinema britânico. Não existe exibicionismo na produção que custou US$ 26 milhões e caberia facilmente na classificação de filme independente, se fosse nos Estados Unidos. Há atores muito bons (tradição do Reino Unido), como a ótima Lily James, no papel de Ellie, a namorada de Jack, o próprio protagonista dá conta muito bem da tarefa, além de Kate McKinnon (mesmo sendo americana), no papel da vilã incontornável – que vem a ser outro elemento da fábula. E há o humor, elemento importante para esse tipo de narrativa.
O humor autodepreciativo é uma marca dos britânicos e ele surge com tamanha naturalidade que não parece humor, mas o próprio mundo real. E, ao contrário da comédia escrachada, ele é sutil, ninguém gargalha, apenas ri. Nessa vibração, “Yesterday” conquista o espectador. Não se trata de um grande filme. O mais adequado adjetivo seria gracioso. Ou melhor: em vez do masculino filme, a feminina fábula. “Yesterday” é uma graciosa fábula cinematográfica.
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