Hoje é sábado. Hoje limpei o chão do meu apartamento, de novo. Sujeira no chão me incomoda muito. Vai entender. Hoje, sábado, recebi um áudio da Jussara, amiga de longa data. Me dou conta de quão longe nos conhecemos ao imaginar o preenchimento de algum formulário na internet; sabe quando pedem o dia, o mês e o ano de nascimento? Pois é, aí começa a procurar o ano em que nasceu e não para mais de rolar o mouse. E só então percebemos como o tempo voa. Para amenizar a certeza do envelhecimento, já disseram que envelhecer é para os fortes – não me sinto forte não -, sempre digo a mim mesma: “Sou mais velha que a maioria dos que conheço; semelhante na faixa etária de um punhado de gente e mais nova que uma multidão”. Mais jovem! Doce ilusão! Que importância tem isso ao pensar na existência a derrubar pessoas conforme aquela brincadeira, lembra, de colocar as peças de dominó enfileiradas e o dedo de um “deus” dá um peteleco e, uma a uma, vão caindo, algumas antes e outras depois, mas caem todas. Também me recordo do poema “O velho do espelho”, de Mário Quintana:
“Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto…é cada vez menos estranho…
Meu Deus, Meu Deus…Parece
Meu velho pai – que já morreu!” (…)

É esse estranhamento de olhar no espelho e por vezes não se reconhecer, e sim enxergar seu pai, sua mãe. Minha mãe! Dias desses meu sobrinho-neto Guilherme veio me visitar. Ele foi até meu quarto, olhou uma foto no porta-retratos onde eu e minha mãe estamos abraçadas em cima de uma duna, na cidade de Natal, Rio Grande do Norte. Foi em 1999. Perguntei: “Quem é essa?”, apontando pra minha mãe. Ele me olhou nos olhos e prontamente respondeu: “É você!”. Sorrio a contragosto, a sinceridade das crianças às vezes irrita. “E essa?”, colocando o dedo sobre mim. “É minha mãe?” “Não, Gui, essa sou eu e essa é sua bisa”. O Guilherme me olhou desconfiado, virou as costas e saiu porque aquela conversa estava muito chata para qualquer um, imagina pra uma criança de 4 anos. Sozinha no quarto, me rendi à passagem do tempo ao contemplar demoradamente a fotografia. Senti saudades daquela viagem, da minha mãe. E pensei: “Como perdemos a nossa identidade e assumimos o rosto de nossos pais. Como nos distanciamos de quem éramos, de quem pensamos ser e nos tornamos o que tememos: velhos.”
São tempos difíceis, tempo de muita análise dos acontecimentos, sobretudo análise em primeira pessoa. É um período de faxinas. Limpar o que nos incomoda; jogar o desnecessário; varrer, não vale empurrar pra debaixo do tapete -, toda sujeira visível e invisível. Não é uma autoajuda, algo que num estalar de dedos se transforma feito passe de mágica. É um processo árduo. Ter que parar, reduzir a marcha da pressa, a velocidade de como falamos, como pensamos; ter menos lugares pra exibir os nossos excessos e, pasmem, passar horas a fio com essa pessoa conjugada no pronome reto, no singular. Quando o “eu” fala, corremos o risco de escutar revelações a nosso respeito que não gostaríamos. O silêncio e a solidão apavoram. O “espelho” nos põe frente a frente um indivíduo há muito tempo perdido: “Muito prazer!”
Por isso mexeu comigo o áudio da minha amiga contando como estava difícil conviver com esse retiro forçado. Logo a Jussara, super comunicativa, amante dos encontros com os amigos, novas pessoas, do contato próximo. Para ela, a bagunça temporária do apartamento em que vive representa, de certa forma, a sua bagunça interior. O que me fez pensar e repensar este momento.

Eu, particularmente, tenho medo de quem vai sair porta afora assim que o isolamento for suspenso oficialmente no Brasil.
Newsletter:
© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74