Prezado companheiro de cela ao lado,
tenho ouvido seus insistentes gemidos. Sinto suas contorções e sussurros para que tudo termine logo. Penso na inevitável explosão nuclear; na nossa breve, passageira existência. Mas logo percebo que essa cela úmida, com água até nossos membros, com espaço de um corpo, posição de feto não nascido; o ar a faltar aos pulmões e esse gotejar constante é mais preciso que a guerra, todas elas pelas quais passamos, inventamos para não viver, só sobreviver.
Toco, submersa, a parede espessa e gélida. Tento sentir algum calor que pulse vida. Tantas vezes, não sei precisar, encostei meus finos e enrugados lábios a gritar por você. Voz que não saía, voz calada, sufocada. Não sei se era meu o eco ou seu balbuciar de palavras incompreensíveis, desconexas. Ainda assim, eu me alegrava antes do sono dolorido e profundo da interminável noite.
Hoje, ou ontem, ou amanhã, não posso dizer ao certo que tempo estou…, estamos…, acordei? Dormi? Sonhei? Pesou-me o pesadelo de seu silêncio? Meu silêncio? Sensação dilacerante de dor do não ouvir mais a sua presença deixou-me desesperado. Gritei, acho…, não…, tenho certeza, gritei por você, por essa semivida. Nada, nada, nada. Debati-me nesse não-lugar, mas tornou-se um lugar, ou delírio, ao ouvir passos, barulhos do que talvez seriam chaves. Elas tilintavam forte, fraco, um sibilo… Disseram coisas, não sei ao certo, mas…, sim, disseram. Em um espaço de segundos, minutos, horas, não sei, de novo, não sei, arrastaram algo mole, o barulho nas pedras, que penso existem fora daqui, era oco, também.

Gritei, gritei, clamei, implorei. Aí mandaram que eu me calasse. Algo bateu contra o lado de fora da parede, ou o lado de dentro? Afoguei minhas palavras e tudo virou silêncio profundo. Nenhum som! Nada, repetidamente, nada!
Ergui minha cabeça nesse torso flácido, curvo e pensei: “Não terei mais propósito em estar aqui sem ouvir, creio, verdade, sem ouvir, gemidos de dor; sem sentir o cheiro fétido de água podre; sem a tortura repetitiva dos pensamentos, solitários raciocínios perturbados sem sinônimos, sem unidades.”
Então, agarrei-me às grades, flutuei… Naveguei em tão diminuto oceano e em um respiro curto pude ver o que seriam seres rodeando um corpo qualquer; corpos quaisquer. Eram tantos, outros tantos quase mortos olhando para o nada. Estranho ritual esse, vidas cuja a sequência é uma luta a nos moldar a imagem e semelhança do que mesmo?
Puxei-me abaixo e fui roçando meu corpo nas paredes ásperas, molhadas, até ficar submerso na água onde tudo se mistura. Meu sangue ralo confundindo-se com a umidade, rolando preguiçosamente através da pele. Enquanto isso, sobreveio-me uma sensação de que tudo pode não ser real, não estar aqui. Sendo assim, essa cela não existe,
caro ex-companheiro de cela ao lado.
Fotos: Maria Angélica Pizzolatto
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