Pensar Psicanalítico

A caminho do interior

por Vagner Couto
Publicado em 27 de agosto de 2023

Vou construir uma metáfora pessoal a partir de uma viagem que fiz alguns anos atrás – viagem que, de alguma forma, ainda faço infindamente.

Parti de Campinas com destino a Uberlândia. Daqui > ali, uns 500 quilômetros. Em outras palavras, toda uma existência.

Campinas tem quase 1 milhão e duzentos mil habitantes, e é centro de convergência de muitas cidades no seu entorno. Tudo por aqui é proporcional a essa centralidade: grandes rodovias, com muito movimento, muitos sons e construções às suas margens. Construções lado a lado, sem espaços vazios, com intensa urbanização: shoppings, fábricas, postos de combustíveis, comércios, oficinas, outlets, restaurantes…

Saí de casa e em pouco tempo estava na rodovia Dom Pedro I e, logo depois, na rodovia Anhanguera. Essas duas rodovias têm, no trecho Campinas, média de cinco a seis faixas de trânsito, incluindo marginais, em cada fluxo, todas elas com movimento intenso e rápido – quando não grandes engarrafamentos e lentidão. Aqui e ali, carros, ônibus e caminhões em profusão. Consequentemente, muita fumaça e cheiros ao nível do chão, e mais fumaça ao nível do céu – meio cinzento e lúgubre.

Saí da cidade com todo esse peso me envolvendo. Percebo em algum lugar de mim uma ansiedade de sair logo dali – daquele lugar e daquele estado. Eu sentia muito movimento, muitos sons, muito trânsito na superfície de mim.

Depois de alguns quilômetros percorridos na Anhanguera, deixam de existir as marginais, diminui a intensidade do trânsito, os sons amainam um pouco e começam a aparecer os primeiros rasgos de paisagem, mas ainda muitas construções. O céu começa a mudar pra um tom um pouco mais azul.

Vou entrando mais dentro de mim, e percebo uma mudança de ritmo interno, uma pulsação mais serena e até mesmo uma quietude maior: já não penso tanto e meu diálogo interno diminui.

Mais adiante, as construções começam a rarear, e já dominam o olhar um ou outro pasto, um pequeno bosque, uma ou outra plantação: soja, milho, cana, eucalipto, laranja…

Aqui e ali, um ipê florido, uma mangueira solitária fundida no espaço, uma jabuticabeira…

Nesse ambiente, aparecem algumas vacas, cavalos, cabritos, carneiros e até galinhas.

Aparecem também os primeiros pássaros e passarinhos: gavião, sabiá, anu, pássaro preto, lavadeira, canarinho, joao-de-barro… Algum destes canta dentro de mim, onde já estou, numa camada mais profunda…, nessa altura da viagem, e essa melodia se irradia ao meu âmago e desperta memórias de tempos longínquos. Meu sentir enternece e me sinto mais brando e humano.

Continuando a estrada, as construções comerciais ou industriais se tornam mais rarefeitas, o azul do céu domina meus hemisférios e o horizonte afirma sua existência. De um lado e outro da estrada o que vejo agora são paisagens verdadeiras, verdadeiros cenários concebidos pela natureza no seu tempo e maestria, que clamam ao motorista uma menor velocidade em sua condução. Com isso, apresentando e evidenciando um teorema básico: quanto menor a velocidade, melhor a percepção.

Uma seriema atravessa a estrada deixando no ar o seu canto agudo e penetrante. Minha alma (eu mesmo) o recebe qual poema lírico concebido especialmente pra mim.

Eu e a Natureza iniciamos nosso diálogo e, afora o som misterioso desse diálogo, paira no ar puro que agora respiro e que totalmente me envolve, um silêncio profundo.

Mais à frente, a estrada se estreita, sendo agora pista única com dois fluxos. O asfalto já não é tão bom e requer menos velocidade ainda. Essa menor velocidade me abre o espaço contemplativo daquele pedaço do mundo e também de mim mesmo, já no meu eu mais profundo.

Posso contemplar, quadro por quadro, qual um filme em câmera lenta, as belezas que a natureza me oferece: uma garça pousada nas costas de uma vaca… uma nuvem passando… a flor de São João… um lago… uma árvore de espécie que nunca vi… os buritis… uma estradinha de terra conduzindo a uma casinha no meio do vale… um tucano… um pica-pau… um pôr-do-sol… esse sentimento… esse outro sentimento… aquela dor… aquela mágoa… aquela falta… essa emoção… essa lágrima…

E assim eu percebo que precisamos e podemos sair da superfície agitada, movimentada e ocupada de nossas vidas e penetrar mais profundamente em nós mesmos pra perceber as zonas se sombra e luz que nos habitam, como realmente somos, como estamos, ver todas as belezas e grandezas que dentro de nós existem, todos os silêncios que ali repousam, e compreender tudo aquilo que precisamos compreender.

Assim, camada por camada, podemos penetrar em dimensões de mais e mais serenidade, mais e mais naturalidade, mais e mais sinceridade quanto a nós mesmos, mais e mais acessando a verdade essencial e o silêncio primordial que tudo falam e a tudo ecoam e dão sentido.

Cada vez mais profundamente, cada vez mais dentro, cada vez mais sem as tantas influências externas construídas e artificiais, cada vez mais conosco mesmo, com quem realmente somos, com o que realmente sentimos, na solidão da unidade que nos constitui… – e mais perto do eu verdadeiro que um dia conheceremos melhor na medida que avançamos com nossa evolução autêntica, fiéis ao que realmente vemos que necessitamos alcançar e transformar – estando no caminho e caminhando no caminho.

E aqui, nesse lugar interior, podemos experimentar mais silêncio, quietude e paz.

Em tempo: Uberlândia significa “terra fértil.”

Como lidar com tudo isso? Psicanálise, terapia, autoconhecimento – algo assim. 

 

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VAGNER COUTO, psicanalista, realiza seu trabalho terapêutico tendo por base uma profunda escuta empática. Não ortodoxo ou sectário, tem um olhar pluralista em sua prática clínica. Assessor acadêmico do CEFAS, Escola de Psicanálise, já criou e coordenou a realização de mais de 100 eventos psicanalíticos e de saúde mental junto às principais instituições destas áreas no país, tendo trabalhado com pessoas como José Ângelo Gaiarsa, Marta Suplicy, Rubem Alves, Paulo Gaudêncio, Vera Lamanno e Roosevelt Cassorla. Tem profunda vivência em práticas holísticas de saúde mental em instituições como Brahma Kumaris, Fundação Peirópolis e Laboratório de Práticas Dialógicas. Tem 27 anos de experiência como conselheiro em instituição dedicada ao autoconhecimento, à expansão da consciência e à espiritualidade. É autor dos livros “Admirável momento novo” e “A estrela da manhã”. Jardineiro e poeta, ama plantar árvores e cuidar delas.

 

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