Cazuza se interessava por mentiras sinceras. Portanto, ele não se constrangeria em ver seu intérprete Daniel Oliveira subir na mesa de um restaurante e, feito um Rimbaud dos trópicos, declamar poemas em “Cazuza – O Tempo não Para” (Sandra Werneck e Walter Carvalho, 2004). A cena pode até ter acontecido, mas é bem provável que seja só uma licença poética permitida para o filme se tornar palatável ao grande público.
Tim Maia, ao contrário, faria um estardalhaço se visse como as loucas aventuras dele neste mundo foram atenuadas em Tim Maia (Mauro Lima, 2014) – ali também há várias mentiras sinceras. Assim como “Bohemian Rapsody” (Brian Singer, 2018), a cinebiografia de Fred Mercury, em que tudo é meio exagerado e a atuação do protagonista Rami Maleck uma caricatura.
Nos três casos, o uso de drogas de várias naturezas é inequívoco, assim como a euforia para com o sexo – dois deles morreram vitimados pelo vírus do HIV – e, no entanto, tem-se a impressão de eram anjos castos consumidores de água. Os respectivos filmes passam ligeiros por estas questões como se não fossem importantes, em clara tentativa de mitificar os protagonistas.
Espectadores de “Rocketman” (Dexter Fletcher, 2019), ao contrário, podem escolher a justificativa pela qual gostaram do filme, porque ali há muitas verdades sinceras. Alguém pode refutar o argumento de colocar no desprezo do pai pelo filho a razão de todos os males de Elton John (Taron Egerton) – a mãe também não se importava muito com ele. De fato, seria simplificar o drama, mas não deixaria de ser um motivo suficientemente forte.
Há outros senões, porém, o diretor (junto com produtores e o roteirista) estabelece desde o início qual o caminho a ser perseguido: depois de um surto de drogas, o roteiro leva Elton John todo paramentado para uma clínica de recuperação de dependentes de drogas. E ali, em uma roda e cercado de pessoas desconhecidas, ele escancara o drama: sou viciado em álcool, cocaína, comprimidos, sexo etc.
Quem está ali no centro das atenções no círculo de dependentes anônimos de droga? Um famoso cantor de rock, rico, cheio de amigos bajuladores, um homem que deflagrou contra si mesmo uma guerra cujo objetivo era a própria destruição administrada em doses lentas. Nenhuma mitificação. Um homem acabado que pede ajuda a estranhos porque não sabe mais o que fazer.
O filme é, portanto, um longo flashback narrando as histórias que remetem à infância, passam pela adolescência, pelo período em que começa a compor e, da noite para o dia se transforma em ícone pop, tendo Bernie Taupin (Jamie Bell) um fiel letrista como parceiro. Elton não gosta de si mesmo e decide se fantasiar – perfeita metáfora de quem quer se esconder. “Eu gastei muita energia com quem não tinha importância”, ele declara em dado momento.
O roteiro (Lee Hall) e a direção não têm qualquer pudor em assumir que não querem mentir (mesmo se for com sinceridade), pelo contrário, querem falar de verdades que machucaram o personagem. Assim, Elton é mostrado em êxtase diante de uma plateia igualmente extasiada e, na intimidade, chorando, encharcando-se de bebida, metido em todo tipo de sexo casual, tentando o suicídio (linda a cena do resgate com os dançarinos bailando na piscina) e se entupindo de drogas.
Todas esses infortúnios para mostrar como um homem (mulher) na lama pode enxergar uma luz no lugar mais inesperado. “Estou aqui porque preciso de ajuda”, eles diz ao grupo de espectadores do centro de recuperação. Lindo também o abraço do adulto Elton com a criança Elton, que, então se chamava Reggie Dwight, como se dissesse a si mesmo: ame essa criança ainda não contaminada de mundo que existe em você; nela está a dignidade perdida. Se o fizer, você a terá de volta.
Curioso pensar que os três filmes citados no início, os protagonistas estão mortos – talvez não tenham tido tempo de, igualmente, buscar a redenção. Elton John está vivo, bem consigo mesmo e ainda pode cantar a melodias dele e versos de Bernie Taupin como: “Eu quero ouvir os sinos ressonantes/ das igrejas distantes cantarem/ mas, antes de tudo, por favor me livre/ destas algemas dolorosas/ e abra esta gaiola em direção ao Sol”.
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