Cronicando

Quintais

por Maria Angelica
Publicado em 24 de junho de 2020

Quando penso em escrever sobre o belo sou arrebatada por imagens e sons desesperados de dor. Certo dia, cumpria a rotina de escrever e estudar em meu escritório. Pela janela aberta entrou um choro alto e dilacerante, desses que apertam o peito a tirar o ar. Eu me levantei e comecei a procurar de qual andar vinha tamanho solitário sofrimento. Nesses tempos de ora pandemia abre, ora pandemia fecha, estamos cada vez mais sós. No início, quando havia uma perspectiva de fim, as pessoas procuravam suprir de alguma forma a solidão do outro e a dele também, cantando na sacada, por exemplo. Na medida em que o tempo foi passando, países saindo de certa forma desse inferno, a impressão é de que nós, brasileiros, permanecemos aprisionados em uma nau perdida, sem bússola a nos guiar. A cada dia que passa, nos voltamos silenciosamente para dentro de nós mesmos, como em uma concha. Não há uma previsão de quando isso vá acabar e paira no ar a sentença de um 2020 perdido. Perdido! Eu penso alucinadamente nas crianças, naquelas que não têm alguém de sua idade para brincar, enfurnadas em um mundo de alguns metros quadrados, a proximidade constante de adultos e suas neuroses, agressividades, desesperanças, nenhum horizonte. Que traumas poderão guardar?

Dia 19 de junho meu sobrinho-neto Guilherme completou cinco anos. Até chegar esse dia ele perguntava se por causa do Novo Coronavírus não iria fazer aniversário; se “…só o ano que vem…” pois não poderia convidar os amiguinhos da escola. Ele é a única criança em uma casa de três adultos. Não, não passou em branco. Houve festa, quer dizer, uma festinha. Nada de aniversário virtual através do Zoom ou Meet. De virtual somente a mensagem linda na voz da priminha Lívia, no alto também dos seus cinco anos declarou, repetidamente, o amor incondicional ao priminho: “Guilherme, eu te amo!” O suficiente para fazê-lo estufar o peito de alegria. De presencial mesmo somente os pais, Verônica e Elton; a avó Stella; eu e meu irmão Carlos. A mesa decorada tinha “Guilherme and Monster Machines”. Claro, não poderia faltar o brigadeiro, mas nada, nada de algazarra de crianças.

Quer dizer, havia sim uma vozinha cantando, falando, reproduzindo sons entre as bexigas que subiam e rapidamente ele corria para evitar que alguma delas atingisse o solo. E quando isso acontecia, “…oh, meu Deus!” Tentei imaginar o que poderia se passar naquela cabecinha. Mas o Guilherme estava ali, feliz, se divertindo com os amigos imaginários até que nós, marmanjos, saímos da roda de conversa e entramos na brincadeira. Por um instante esqueci de mim mesma, parei de olhar para o meu próprio mundinho interior e me senti livre brincando entre balões coloridos, alguns com pequenos corações, e um garotinho satisfeito com o que a vida naquele momento oferecia a ele. Transpirei tanto que me permiti comer coxinhas, croquetes, bolinhas de queijo, beber guaraná gelado sem a menor culpa. A cantoria dos “parabéns” foi precedida pela coreografia com os bracinhos fazendo às vezes de um relógio e voz do meu sobrinho-neto na marcação do “tic tac, tic tac, tic tac”.

Imaginei a contagem regressiva em direção a uma vida mais simples, porém mais intensa no que ela pode nos oferecer de melhor. Nós, os adultos, nos desdobramos na hora de cantar os “parabéns”; tentamos preencher o vazio deixado pela enorme família e amiguinhos. Em cima da cadeira, com a boca suja de chocolate, o Guilherme era só felicidade regendo um coro de cinco vozes. Ele se divertia ao mergulhar os dedinhos na cobertura do bolo e agradecido acompanhou toda cantoria com um largo sorriso.

Sorrir simplesmente, um doce remédio. No início relatei a respeito do choro que ouvi vindo de fora, mas, na verdade, vinha de dentro de mim. É tão difícil admitir que de fato nos baqueamos diante da imprevisibilidade. Admitir que já não somos tão fortes mais; admitir a dor da espera de um não sei o quê. É um exercício complicado. Vivemos em um turbilhão de emoções, um sobe e desce. Sei, não estamos sós nessa gangorra. Então, para acalmar minhas emoções à flor da pele eu sempre me receito algumas delicadezas. Eu me sento diante de meu pequeno jardim: alguns vasinhos de flores: minhas velhas companheiras de longa data, as orquídeas que não deixam de florir; meus dois alecrins que ganhei do meu tio Luiz há onze anos; pezinhos de mexericas que nasceram de sementes de frutas que saboreei e outras plantas ainda não nominadas porque não sei o que são, mas estão firmes e fortes. Cumpro a rotina de cuidar delas, aguá-las e elas cumprem a rotina de cuidar de mim.

Ao entardecer acompanho encantada mais um pôr de sol, faço questão de fotografar cada um deles desde que minha vida passou por uma reviravolta em todos os sentidos. Precisei aprender a olhar, enxergar, acalmar meu coração, minha respiração; aprendo a cada dia a contemplar apesar dos barulhos externos. Sou o ponto de partida e de chegada de uma viagem para não muito longe, é um breve passeio imaginário como o que fiz dias desses.

Uma amiga querida, Maria Clara, me contou um sonho que teve comigo. Nesse sonho eu comprava a casa dela. Ela me via sentada de costas no quintal “…como era antigamente…” e, preocupada, pensou se eu cuidaria direito de suas plantas. Quando Clara partilhou esse sonho comigo, eu o achei tão singelo. Como não conheço nem o antes e nem o agora do jardim de Maria Clara, minha amiga enviou um vídeo abrindo as portas de seu quintal. Virtualmente, passeamos pela “bagunça” de seu quintal, sem “estética, um enterrar e desenterrar”. Segui seus passos pelo caminho entre pedras e pedrinhas. Clara mostrou a horta de “mãe misturada”; a espinheira-santa; orquídeas penduradas em árvores; “temperinhos” como a salsinha, manjerona; erva-cidreira; “…um pé lindo de incenso, olha!” Até senti o cheiro, o perfume. Um mundo para onde fugir e ficar “…que nem tatu, de vez em quando”. É, a nossa vida é um quebra-cabeça. As peças que se encaixam nos são ofertadas generosamente a cada passeio como esse; a cada ligação rotineira e amável de familiares; amigos; estranhos que nos enxergam atrás das máscaras e a lembrança feliz das horas liberadas no “tic tac, tic tac” do Guilherme.

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