Cinema Literal

“1917” vale pelo exercício cinematográfico

por João Nunes
Publicado em 27 de janeiro de 2020

O filme “1917” (EUA/Inglaterra, 2019), de Sam Mendes, em cartaz em Campinas, deverá ser o prêmio mais óbvio da Academia de Hollywood na cerimônia do Oscar, marcada para 9 de fevereiro. Obscuro até então, surpreendeu todo mundo ao levar o Globo de Ouro no começo do mês e se consagrou na premiação do Sindicato dos Produtores há uma semana – a mais confiável prévia do Oscar.

Indicado em dez categorias, sim, ele tem méritos: direção de arte e fotografia impecáveis, trilha discretíssima que, quando surge, complementa a narrativa com emoção contida, e roteiro rigorosamente atento aos manuais; porém, com variações interessantes do ponto de vista técnico. Como, por exemplo, driblar o espectador na definição do herói e o modo que este recusa e, depois, aceita o chamado para a jornada.

Tem dois outros méritos – ambos notáveis. O primeiro refere-se ao chamado plano-sequência. Para quem não sabe, aqui vai uma explicação simplória: a cena de um filme é rodada entre a ordem do diretor para início (ação) e para o fim dela (corta). Mas há planos sem cortes – daí, o plano-sequência.

Em “1917”, supostamente, não há cortes. Significa dizer que o diretor gritou “ação!”, no início das filmagens, e “corta!” só ao final delas. Há filmes assim. “Arca Russa” (Aleksandr Sokurov, Rússia, 2002), por exemplo. Trata-se de um único plano que dura 87 minutos.

Mas não foi isso que aconteceu em “1917”. Ele fez um exercício de ordem técnica e de linguagem – que se completam; o primeiro a serviço do segundo. Para entender como isso se dá, vamos à história.

Por conhecer bem a geografia de onde se encontra a tropa dele durante a Primeira Guerra Mundial, o jovem cabo britânico Blake (Dean-Charles Chapman) é convocado por um general para ir a pé levar uma mensagem a outro batalhão tendo de atravessar território inimigo. Blake terá a liberdade de escolher um companheiro de viagem e chama o também cabo Schofield (George MacKay). Eles têm o restante daquele dia e uma noite para chegar ao local. Com um detalhe: o irmão de Blake está no outro batalhão – o que nos remete, com outro viés, a “O Resgate do Soldado Ryan” (Steven Spielberg, 1998).

O roteiro do próprio Sam Mendes e de Krysty Wilson-Caims, baseado em histórias contadas pelo avô do cineasta, sugere ao espectador que o movimento dos dois cabos ocorre em tempo real. Desde o chamado para a missão, passando pelo processo de saída das trincheiras, ao surgimento dos muitos obstáculos tem-se a impressão que as ações estão acontecendo no tempo estabelecido pelo relógio.

A ideia é ótima. Se o espectador vai ao cinema sem saber, terá duas reações: de início se deliciará com o plano-sequência único que se desenha e como a técnica ajuda a estabelecer o tempo dentro história e, depois, começará a ficar intrigado. Como ele conseguiu fazer isso?

Ele utilizou um truque, pois emendou de forma imperceptível algumas cenas aproveitando locais de pouca ou nenhuma luz (um túnel, por exemplo) ou ajustes digitais (chroma key, entre eles).

O argentino Juan José Campanella usou truque semelhante na memorável cena do campo de futebol (veja no Youtube) de “O Segredo dos seus Olhos”, premiado com o Oscar de filme estrangeiro em 2009. O mexicano Alejandro González Iñárritu procedeu de forma semelhante no vencedor do Oscar de melhor filme com “Birdman (Ou a Inesperada Virtude da Ignorância)”, em 2015. A diferença: Sam usou a técnica o filme inteiro e não por virtuosismo, mas como linguagem.

O filme poderia ser grandioso, não pecasse pelo óbvio da história de heróis que passam terríveis e inacreditáveis obstáculos para salvar a pátria –  sentimento enraizado na cultura americana. Em dado momento, Sam Mendes poderia ter pesado menos a mão, caso do herói sendo levado pelas ondas (um exagero), ou quando cria insistentemente desnecessários anticlímax (que, aliás, reduziriam o tempo do filme) para um desfecho que o espectador já deduziu.

O Oscar, certamente, irá para “1917”. A Academia não perderia a chance de exaltar uma vez mais os bravos soldados da bélica América – ainda que os protagonistas sejam britânicos, mas os EUA estavam na guerra e o filme é co-produção americana. Poderia até ser uma opção, não estivesse concorrendo, entre outros, com “Parasita” (Joon-ho Bong).

Compartilhe

Newsletter:

© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74