Bem-estar

No Google, oráculo e guru: a frieza que nos “protege”

21 de dezembro de 2021

(*) Por Vagner Couto

Eu fiquei bem reflexivo quando soube quais são os assuntos mais procurados no Google em 2021 – no Brasil, que é o segundo país do mundo que mais utiliza esta plataforma. Nesta condição, o Google cumpre um papel substantivo em nossa cultura. Num contexto, funciona como um oráculo – pessoa ou coisa que serve de intermediário entre a “divindade” e quem a consulta. Noutro contexto, um profeta, que “prevê” o futuro e direciona decisões. Noutro contexto, ainda, um guru, termo sânscrito que significa “professor” – que tem ensinado o que as pessoas querem saber, ou ser.

O Google gera respostas num nível muito mais rápido que um processo psicanalítico para a geração de um insight, uma intuição ou uma compreensão. O que é muito relevante, a se considerar, pois muitas das buscas no Google são indagações existenciais ou comportamentais. Ele não funciona como o I Ching, por exemplo, que Jung estudou por mais de 30 anos para explorar o inconsciente.

Caberia também refletir o que o próprio Google considerou relevante categorizar no seu relatório 2021, mas não vou mexer com isso agora. São, ao todo, 18 as categorias: Buscas do Ano, Acontecimentos, Como fazer, O que?, Mortes, Filmes, Séries, Programas de TV, Música, Personalidades, Clubes de futebol, Perto de mim, Quanto custa, Atletas Olímpicos, Receitas, Beleza, Virou meme e “Como ser”. Esta última categoria trata a respeito de “Como Ser Isso ou Aquilo, ou Como Ser Assim ou Assado…”. Assim, os “Como ser” mais buscados no Google Brasil 2021 pelo povo brasileiro são: 1. Como ser uma pessoa fria; 2. Como ser entregador do Mercado Livre; 3. Como ser hacker; 4. Como ser atriz; 5. Como ser modelo.

É assim que estamos, portanto, nova civilização do país do futuro, nos quesitos “aspirações existenciais ou profissionais”. Por isso fiquei bem reflexivo, pensativo: é assim mesmo? São essas coisas que importam? Como o assunto é vasto, é na Top 1 de “Como ser” que eu quero me deter.

Como ser uma pessoa fria

Se bem que na frieza pode ter um sentido no rumo da inteligência emocional, há também na frieza um sentido no rumo da psicopatia. Resolvi pesquisar o “Como ser”, encontrando nos mais diversos sites (de Saúde Mental, Terapias, Coaching e outros) coisas como as que seguem, todas na aparente boa intenção de proteger a nossa saúde emocional: use a razão, predominantemente. Quando usamos o coração não costuma dar muito certo. Não seja tão disponível. Seja indiferente: pare de ficar procurando os outros, ligando ou mandando mensagens. Não dê corda para muita conversa.

Não espere nada das pessoas. Se você sente mais afeto por uma pessoa do que ela por você, então pare agora. Faça o seu cérebro parar de produzir substâncias que te estimulem a ir atrás de alguém. Não fique sempre sorrindo, porque sorrir faz você parecer sociável, o que atrai as pessoas. Se alguém falar algo desagradável, não demonstre emoções e olhe para o lado ou ao longe. Não brinque com o cabelo. Dê um aperto de mão suave em vez de abraçar.

Ao falar, use um tom uniforme. Não fale sobre si. Pessoas frias não compartilham muitas informações. Não faça perguntas para outras pessoas, pois isso denota interesse e elas podem se apegar a você. Quando alguém cruzar seu caminho, junte os lábios suavemente para mostrar seu desdém gelado. Erga um pouco o queixo e olhe um pouco abaixo do nariz. Seja muito competitivo, sempre priorizando seus interesses pessoais. Não ajude velhinhos a atravessar a rua.

Se os outros te incomodam com pedidos de auxílio, vai auxiliar porquê? Não faça elogios. Esteja aberto a ferir os sentimentos de alguém com sua indiferença se isso te preserva. Fale sempre a sua verdade, mesmo que doa em alguém. Papai Noel e fadas não existem: não perca tempo com a insensatez, mesmo de crianças. Não dê atenção a pedintes. Por fim: não perdoe, não compreenda, não arrede pé. Quem errar com você que se dane.

Por aí vai. Assim, então, estamos: doídos, desamparados, indiferentes, negando, defendendo, reprimindo e recalcando.

Freud explica: mecanismos de defesa

A frieza toda elencada acima é entendida, psicanaliticamente, como mecanismos de defesa. Que são, basicamente, formas com que o ego (a ideia cristalizada que todo mundo tem a respeito de si mesmo) busca se esquivar de seu encontro com elementos inconscientes, ou conscientes, que possam colocá-lo diante de determinadas situações mais desafiadoras, com o objetivo de o manter numa redoma frente ao que ele considera ameaça à sua autoverdade e à sua autoimagem, protegendo-o de possíveis dores, sofrimentos ou decepções – coisas que ele já experimentou.

Segundo Freud, os principais mecanismos de defesa são o recalcamento, a negação, a regressão, a projeção, a resistência, o isolamento, a racionalização e a indiferença. Dentre estes, o recalque, que se destaca como um dos conceitos fundamentais da Psicanálise, é uma defesa automática e inconsciente, o processo através do qual a pessoa rejeita e reprime determinadas aspirações, representações, pensamentos, lembranças, desejos ou instintos, submergindo-os na negação e no esquecimento, bloqueando, assim, os conflitos ou experiências geradoras de angústia. Se amar é sujeito doer, rejeita amar.

O recalque opera porque a satisfação direta da moção pulsional, que se destina a causar prazer, poderia causar desprazer ao entrar em dissonância com as exigências provenientes de determinadas estruturas psíquicas. Em sentido amplo, é um processo que ocorre em todos os seres humanos. O recalque de qualquer sentimento ou desejo para o inconsciente não os elimina do quadro psíquico, e pode causar distúrbios no indivíduo. A indiferença, ou frieza, é um desses sintomas. E daí advém, então, a solidão e a carência. A pessoa quer e precisa, mas não pode ou não consegue.

Agora, a frase feita: a verdade por trás da frieza é uma necessidade descomunal de amor. Que vai ficar ali, rondando, submersa em sua potência, enquanto aquela ferida não for cuidada e mais equilíbrio for trazido à consciência. A mesma frieza que nos protege é aquela que nos distancia e isola do mundo e da vida.

Como lidar com tudo isso? Psicanálise, terapia, análise, autoconhecimento – algo assim.

(*) Vagner Couto é psicanalista
(19) 99760 0201 – vagnercouto1@gmail.com

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