Por Wanderley Garcia
Que Hercule Florence foi um dos inventores da fotografia você já deve ter ouvido falar. Mas talvez o que você não saiba é que ele também foi boticário, desenhista, ilustrador, impressor, fazendeiro, dono de escravos, comerciante, professor, dono de colégio. E boa parte disso em Campinas (antiga Vila de São Carlos), onde morou por 50 dos seus 75 anos de vida.
Antoine Hercule Romuald Florence, também chamado por aqui de Hercules Florence ou Hércules Florence, nasceu em Nice (França), em 1804, e aos 20 anos de idade veio ao Brasil. Participou da Expedição Langsdorff (1826-1829), uma aventura de 13 mil quilômetros pelo interior do país para conhecer sua população indígena, as terras, rios, fauna e flora. Desta expedição, produziu inúmeros desenhos, registrando as pessoas, paisagens e espécies encontradas na viagem. “Ele era desenhista e depois o único que sobrou lúcido e faz todo o relatório final [da expedição]. Os desenhos, as pinturas e as aquarelas que ele faz das diferentes tribos de indígenas é maravilhoso” comenta a historiadora econômica, Maria Alice Rosa Ribeiro.

Imagem no site do Instituto Hercule Florence. 1828, aquarela sobre papel, coleção da Academia de Ciências (São Petersburgo)
Na expedição, além de desenhos e relatório escrito, Hercule faz algo inovador. Cria a zoofonia, registrando notas musicais para anotar os sons dos animais. “Como não tinha gravador, não tinha nenhuma forma de registrar o som na época, ele cria essa notação musical, que eu acho uma coisa muito incrível”, comenta a artista e pesquisadora, Ana Angélica Costa, uma das criadoras da Sala Hercule Florence, inaugurada em maio de 2024 no Museu da Imagem e do Som (MIS) Campinas.
Ao voltar da expedição, Hercule se casou com Maria Angélica Álvares Machado Vasconcelos (1812/4-1850), filha do cirurgião-mor e comendador Francisco Álvares Machado e Vasconcelos (1791-1846) e de Cândida Maria de Vasconcelos Barros (17??-1851). Este casamento foi o início do laço de Hercule com Campinas, onde a família veio morar.

Imagem: a esposa de Hercule Florence, Maria Angélica/acervo Instituto Hercule Florence
A vida em Campinas e a invenção da fotografia
Então desenhista, Hercule se aventurou na venda de tecidos que trazia do Rio de Janeiro para Campinas. Porém a historiadora Maria Alice acredita que o empreendimento foi um fracasso. “Ele era péssimo vendedor. Ia ao Rio, comprava tecidos, e não conseguia [vender}. Sobrou até no inventário, está lá a quantidade de tecidos que sobraram [após sua morte]”, conta.
A primeira atividade de Hercule na cidade foi administrar a botica (farmácia) de seu sogro, na rua do Rosário (atual avenida Francisco Glicério). Também fazia impressões de anúncios e desenhos, num processo chamado de autografia. Hercule já era um fascinado pelas novas tecnologias de registro de imagens e em 1836 comprou, com a ajuda do sogro, uma tipografia que trouxe do Rio de Janeiro. Instalou a oficina próximo à “Matriz Velha”, igreja substituída pela atual Basílica de Nossa Senhora do Carmo, entre as ruas Sacramento e Barão de Jaguara. Fundou o jornal O Paulista, uma publicação de apenas quatro números, mas que foi a primeira do interior paulista.
Inquieto, Hercule buscava novas tecnologias para ajudá-lo em suas atividades. A pesquisadora Ana Angélica diz que Hercule tentava registrar melhor as imagens para facilitar seu trabalho de ilustrador, além de poder usar também novas formas de produzir rótulos para a farmácia.
Uma das tecnologias que ele buscava era a reprodução de imagens, que vinha sendo estudada por diferentes inventores nos anos 1830. Hercule já havia conseguido registrar imagens desde a época da Expedição Langsdorff. Utilizava uma câmara escura e papel sensibilizado com nitrato de prata. No entanto, os registros, em negativo, desapareciam com o tempo.
Em 1833, morando em Campinas, ele relata que obteve sucesso na fixação duradoura da imagem no papel utilizando amônia, técnica que ele chamou de “photographie” (fotografia, em português, que significa registrar pela luz). É o primeiro registro do termo que se tem conhecimento, o que ocorreu pelo menos cinco anos antes que o vocábulo fosse utilizado pela primeira vez na Europa, em 1839. Foi o ano que o governo francês oficializou a invenção do daguerreótipo, considerada a primeira máquina fotográfica funcional do mundo, um equipamento que surgiu da parceria entre os inventores Joseph Niépce e Louis Jacques Daguerre, que acabaram mais conhecidos e sendo considerados por muitos como os pais da fotografia.

Imagem: desenho da câmera escura – “protographie”/Instituto Hercule Florence
Mas, como se vê na experiência isolada de Florence em Campinas, no Brasil, as pesquisas mostram que havia vários experimentos sendo realizados pelos inventores ao redor do mundo na época.
Mais invenções e o período fazendeiro
Inventou também um tipo de papel inimitável, que tentou vender para a Casa da Moeda para a produção de cédulas. A venda não aconteceu e ele passou a usar sua criação na produção de rótulos de produtos da botica do sogro. Mais adiante, quando já administrava a fazenda Soledade, Hercule criou um tipo diferente de embalagem e passou a vender café com uma torra especial. “Ele começou a destilar muito a sua veia de inventor para a atividade da fazenda”, comenta Maria Alice.

Foto: rótulos de farmácia. Acervo Instituto Hercule Florence. Crédito: Erika Beraldo
A fotógrafa e pesquisadora Suzana Barretto acredita que havia um grupo de intelectuais na cidade com quem Hercule convivia e que dava sustentação à sua permanência na cidade, estimulando suas pesquisas e invenções. “Não era só pelo amor à Maria Angélica. Era um vínculo intelectual, ele dialogava, ele tinha pares. Ele não era um artista isolado. Estes vínculos ainda precisam ser melhor pesquisados”, provoca.
Suzana é coordenadora da coleção “Sesmarias, Engenhos e Fazendas”, com pesquisas sobre Sousas, Joaquim Egídio e Jaguary (atual Jaguariúna), de 1792 a 1930. A Fazenda Soledade, que foi de Hercule e seus filhos, faz parte da coleção, com capítulo escrito por Maria Alice, que argumenta que a sustentação econômica de Hercule ao longo da vida foi a produção de café. De 1846 a 1950 morreram o sogro, a esposa Maria Angélica e a sogra. Assim, os filhos de Hercule herdaram a fazenda que ele passou a administrar. O inventor se casou novamente em 1854 com Carolina Krug (1828 – 1913).
Do primeiro casamento, Hercule teve 13 filhos, mas cinco morreram quando ainda eram bebês. Do segundo foram sete filhos. Todos os 20 nasceram em Campinas.
Na fazenda, Hercule criou o ancinho, um equipamento parecido com o atual rastelo, usado para varrer o café que caía no chão. Suzana acredita que seria muito importante fazer uma pesquisa arqueológica onde era a sede da fazenda Soledade em busca de vestígios dos instrumentos usados naquela época. “Esse implemento artesanal, que a Maria Alice viu na documentação, talvez encontre coisas desse tipo, da cultura material, da maneira com que ele lidava que era muito diferente dos outros fazendeiros. Acho que é possível encontrar coisas desse tipo, dos instrumentos do trabalho e desse cotidiano”, diz Suzana.
A sede da fazenda Soledade ficava ao lado de onde hoje passa a estrada que liga o distrito de Joaquim Egídio à rodovia Dom Pedro I, próximo à Fazenda Santa Margarida. A propriedade foi vendida pelos herdeiros de Hercule e posteriormente foi comprada por Antonio Carlos do Amaral Lapa, que a rebatizou como Fazenda Sant’ana do Lapa. Recentemente, parte da fazenda foi vendida e no local está sendo implantado um loteamento. A outra parte, onde fica a antiga sede (e onde devia ficar a sede da Soledade) não foi vendida. Lá Suzana percebeu a presença de um muro de pedras que pode ter sido da época de Hercule. As edificações atuais (sede e casas de colonos) são posteriores. Por isso defende a pesquisa arqueológica no local.

Imagem: desenho da fazenda Soledade em 1855/acervo Instituto Hercule Florence
Inventor, artista, fazendeiro… Também era dono de escravos, e contratou colonos imigrantes da Suíça, em regime de trabalho livre. A fazenda Soledade era pequena para os padrões da época, cerca de 40 alqueires, com 18 escravos. Quando Hercule morreu, mais de 40% de sua riqueza era formada por escravos.
Dois aspectos chamaram a atenção da historiadora Maria Alice em sua pesquisa: uma delas é que Hercule tentava não separar os integrantes de famílias negras. A outra é que “ele tem uma originalidade por ter pintado os trabalhadores escravos na lavoura. Isso é muito importante. Ele é um dos poucos que fez isso na nossa história da arte”, diz.
Uma das pinturas traz um peso de papel sobre uma mesa e uma menina negra ao fundo. Em carta a um amigo, Hercule diz: “eu me lembro de te haver escrito que em abril último fiz uma experiência sobre um novo gênero de pintura que chamei de Pintura Solar e que denomino agora de Estereopintura”. Mas o que despertou a atenção de Maria Alice foi Sara, a menina do quadro. Ela constava da matrícula de escravos de Hercule de 1872. A pesquisadora conseguiu inclusive traçar uma pequena árvore genealógica da garota que então tinha 14 anos de idade. O resultado da pesquisa está no capítulo “Hercules Florence e a Fazenda Soledade”, publicado na coleção de Suzana.

Imagem: acervo Instituto Hercule Florence
Mas a relação do inventor com os escravos não ameniza a condição em que viviam. Tanto que, segundo Maria Alice, os colonos conseguiram acumular dinheiro para comprar seus próprios pedaços de terra. Oportunidade que os escravizados não tiveram. “Dada a sua condição, jamais vão conseguir ascender na vida. Olha a condição de um e de outro. Os escravos vão permanecer escravos. Então, por mais que o Hercule Florence fosse educado, civilizado com escravos, não é possível civilização”, argumenta.
Em 1863, Hercule abriu o Colégio Florence, uma escola que funcionou próximo ao local onde hoje está o Mercadão de Campinas. Além de dividir a administração com a filha Carolina Florence, Hercule também foi professor de pintura. No entanto, depois da morte do pai e com a primeira epidemia de febre amarela que atingiu Campinas em 1889, Carolina transferiu a escola para Jundiaí.
As invenções de Hercule faziam parte de seu espírito, mas também de uma necessidade por não estar na Europa, onde a tecnologia era mais avançada. Para a pesquisadora Ana Angélica, as invenções estavam ligadas às atividades econômicas que Hercule desenvolvia na cidade. “Para passar a vida dele inteira, mesmo com todas as dificuldades, mas eu acho também que, ao mesmo tempo, isso pode ter impulsionado ele a inventar tudo o que ele fez, porque ele realmente precisava inventar aquilo tudo”, comenta Ana Angélica.
Numa de suas invenções, Hercule tenta fixar a imagem no papel usando urina. Ana Angélica tem uma suspeita para o curioso uso: ele devia saber das propriedades da amônia para usar como fixador, mas talvez ele não tivesse a amônia ali disponível para ele. Devia ser difícil conseguir esses elementos químicos naquela época. Então, ele experimentou com a urina. Era o que tinha.
Sala Hercule Florence no MIS-Campinas e Instituto em SP

Foto: inauguração da Sala Hercule Florence no MIS-Campinas, em maio de 2024. Crédito reprodução site da Prefeitura de Campinas
Fazer um mergulho na história de Hercule Florence, agora é possível na sala permanente dedicada a ele no MIS Campinas, inauguradas em maio deste ano. Ana Angélica coordenou a montagem com o fotógrafo e jornalista Ricardo Lima, criador do “Festival de Fotografia Hercule Florence”, realizado anualmente em Campinas.
A sala possui duas linhas do tempo (uma sobre Hercule e outras sobre a fotografia), uma câmara escura (como Hercule criou) e totens com vídeos, painéis e QR Codes explicativos.
Os visitantes podem conhecer a cronologia da vida de Hercule Florence e das experiências relativas à invenção da fotografia por meio de protótipos tridimensionais reconstruídos a partir dos manuscritos originais.
A sala fica aberta de segunda a sexta, das 12h às 18h30, e aos sábados, das 10h às 16h. O MIS fica na rua Regente Feijó, 859, no Centro de Campinas.
Também há o Instituto Hercule Florence na capital paulista, dedicado a preservar e divulgar sua obra, e viabilizado por seus descendentes, inaugurado em 2006. Possui um acervo de mais de 10 mil itens. Entre os destaques está a coleção de 2 mil documentos relacionados à vida de Hercule Florence (1804-1879), preservados por Arnaldo Machado Florence, bisneto de Hercule e um dos primeiros estudiosos e divulgadores de sua obra. Para mais informações, acesse: ihf19.org.br/pt-br.
Newsletter:
© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74