Por Stela Calafiori
Saudade e orgulho. Se fosse possível resumir em apenas duas palavras os sentimentos de antigos alunos do famoso Colégio Culto à Ciência, em Campinas, seriam estas. “É um colégio que marcou profundamente tanto a vida de quem estudou, como quem deu aula lá”, comenta o psicólogo e psicanalista Luis Eduardo Salvucci Rodrigues, que foi estudante entre os anos de 1966 e 1972, e é um estudioso da história da instituição.
O Culto à Ciência é a escola mais antiga do Brasil em funcionamento no mesmo prédio (tombado pelo Condephaat e pelo Condepacc), desde a sua fundação, em 1874. Mas considerando a data de lançamento da pedra fundamental, em 13 de abril de 1873, também estão sendo comemorados os 150 anos da instituição em 2023.
Alunos que se tornaram famosos estudaram na escola, como o pai da aviação, Alberto Santos Dumont; o poeta, ensaísta e jornalistas, Guilherme de Almeida; o jornalista e fundador do jornal O Estado de S. Paulo, Júlio de Mesquita; o apresentador Fausto Silva, entre vários outros.
Foto: fachada atual da escola/2022. Acima, o colégio em 1928
A história do colégio, marcada por sua alta qualidade e formação de alto nível, é tema de diversos estudos por muitos pesquisadores.
A historiadora, mestre em história social e doutora em história cultural pela Unicamp, e coordenadora do departamento de Turismo da Prefeitura de Campinas de 2003 a 2012, é uma delas. “Quando você começa a estudar a história de Campinas começa a perceber a sua riqueza econômica e que por trás disso existiu uma série de grupos políticos relacionados a este desenvolvimento. E quando aprofundamos ainda mais os estudos, chegamos na maçonaria”, conta ela.
Inaugurada como uma escola particular para meninos, o Culto à Ciência contava com vários membros que faziam parte da Loja Maçônica Independência. A loja era composta pelos fazendeiros, comerciantes e intelectuais da cidade de Campinas, dentre eles Antônio Pompeu de Camargo, Francisco Glicério, Campos Sales, Jorge Krug, Joaquim Bonifácio do Amaral (Visconde de Indaiatuba), Joaquim Egídio de Souza Aranha (Marquês de Três Rios), Cândido Ferreira e o Barão de Atibaia.
O nome da escola reflete a influência do positivismo de seus fundadores. “Se tratava de uma elite maçônica de diversos credos, religiões e posicionamentos políticos diferentes, porém, tinham um ideal em comum, no qual a ciência era tida como papel estratégico civilizatório”, relata a historiadora.
Imagem: arquivo CCLA
“A história do Culto à Ciência já começa de forma especial na escolha dos professores, membros da maçonaria, que traziam um grande refinamento intelectual. Cada qual na sua área, criou seu ambiente de estudo, seus laboratórios, tudo feito de forma muito atenta e de alto nível. Foi construído um projeto de futuro para a sociedade”, completa.
Em sua pesquisa, a historiadora encontrou registros que mostram que a escola se mantém funcionando com os alunos que pagavam valores altos pelo sistema de educação. “Quando entramos no período da República, toda a estrutura foi doada para o bem público assumir o projeto de educação, já que várias figuras daquele grupo político, como Francisco Glicério, por exemplo, assumem o cargo republicano”, relata ela. “Neste momento, o estado republicando de São Paulo recebe em suas mãos uma escola de altíssimo padrão e já elevada a ginásio”, completa.
Para Mirza, a instituição de ensino foi um marco especial na educação de alto nível. “Campinas ganhou muito na qualidade da formação de sua juventude ao longo da história. Foram os professores do Culto à Ciência que criaram o Centro de Ciência, Letras e Artes da cidade. Uma instituição de tamanha importância para a cidade, criada para disseminar a cultura e arte e também se tornar um espaço de discussão pública. E, hoje, vendo o desenvolvimento do município ao longo da história, é possível ver o impacto na geração de pensadores e cientistas; na qualificação de toda sua sociedade civil, planejando o desenvolvimento e conhecimento relacionado ao bem comum”, afirma.
A historiadora também cita outros legados deixados pela escola. “A Unicamp e o Instituto Agronômico são embriões do Culto à Ciência. São projetos que, com o tempo, ganharam uma dimensão enorme e se tornaram uma organização pública. O Culto à Ciência iluminou caminhos e proporcionou a formação de uma sociedade de coletividade, cujos frutos ainda são colhidos e, porque não, ainda semeados para o futuro.”
Memórias
Foto: turma do ginásio em 1957 / (arquivo CCLA)
Para antigos ex-alunos, nostalgia. “Saudade do tempo da adolescência, de cada fase marcante que passamos naquele espaço e, principalmente, dos ‘causos’ que temos para contar, os bons e os ruins, desde as peraltices, até mesmo as repreensões e punições que recebíamos”, relembra o psicólogo e psicanalista Luis Eduardo Salvucci Rodrigues.
“Na época, as meninas estudavam separadas dos meninos. Nós, meninos, tínhamos aulas de artes industriais, e elas, artes domésticas. Mas, o que mais me marcou e creio que seja a principal característica do colégio, o que foi fundamental, ao meu ver para a formação de seus estudante, foi a disciplina cobrada durante o período escolar. Disciplina essa que era muito cobrada pelos professores e inspetores. E é curioso que, mesmo assim, todos eles são lembrados com muito carinho pelos ex-alunos”, complementa Luis Eduardo.
Foto: Dayz Peixoto Fonseca na biblioteca do colégio (arquivo CCLA)
A pesquisadora cultural e escritora, ex-supervisora de ensino da Prefeitura de Campinas, ex-coordenadora do MIS e ex-presidente do CCLA, Dayz Peixoto Fonseca, se lembra muito bem das exigências das disciplinas. Em artigo publicado recentemente, ela relatou. “Certo dia, meu dever de casa, passado pelo Professor de Português João Cury, foi a leitura de ‘A Dama de Pé de Cabra’. Que história mais esquisita! A narrativa fantástica colocava-me diante do mistério e de uma dupla exploração do tempo: o tempo do autor, Alexandre Herculano, e o tempo dos personagens. Quantas leituras foram necessárias para eu realizar a tarefa? Vocês não vão acreditar!”, escreve ela.
Em seu relato, Dayz também se pegou pensando do quão forte era a presença da cultura europeia na educação. “Ao entrar na sala de Francês, sim, havia a sala de Francês, de Música, de Ciências, de Geografia e outras. Dona Maria Rangel era uma professora tão apaixonada pela cultura francesa que nos levava a inesperados horizontes: da leitura de ‘La Marseillaise’, o hino francês, aos versos de ‘Le Vase Brisé’, poema encantador, que guardei o título na memória. Fui ao Google para dele me lembrar por inteiro”, comenta ela.
Foto: painel dos professores no corredor da escola
E falando em professores, o psicólogo também lembra do rigor que era cobrado de quem lecionava. “Assim como por muito tempo existiu um processo seletivo para os alunos ingressarem no colégio, também havia um concurso para admissão dos professores, que vinham de todo o país. Na época, era uma carreira muito valorizada. E como Campinas ainda não era uma cidade muito grande, ainda tínhamos muito contato com os nossos mestres, podemos dizer que éramos uma grande comunidade.”
Até hoje, Luis Eduardo mantém uma relação muito próxima com o colégio da sua adolescência. “O respeito e o amor é uma marca de todos que passaram por lá. Todos os alunos ainda têm este vínculo. Temos hoje uma comunidade com mais de 1200 membros que frequentemente trazem matérias e memórias do passado. Além disso, nos preocupamos muito em trazer os jovens alunos para participar conosco e terem acesso a estas histórias e, assim, manter a tradição. Para mim, isso é muito importante”, afirma ele, que não esconde o orgulho que sente ao ver que, apesar do tempo, muitas coisas ainda continuam as mesmas.
“Vemos na imprensa muitos problemas de escolas que passam por indisciplina e falta de respeito por parte dos alunos com os professores. E lá, o que eu venho acompanhando é que existe muita cooperação e disciplina até hoje. Realmente, é um colégio diferenciado”, declara ele, que também se dedica na formação e estudo sobre a história do Culto à Ciência.
“O colégio sempre estampou os jornais de Campinas e de todo o espaço e eu venho procurando materiais que possam enriquecer ainda mais o seu acervo, destacando a sua importância para a educação do país como um todo. Um exemplo é o fato de que a escola foi equiparada, no início do século XIX, ao Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, uma referência no ensino secundário do país. Ao terminar o ginásio, os alunos tinham acesso direto a qualquer faculdade do Brasil”, revela o pesquisador.
Foto: Luis Eduardo Salvucci Rodrigues (arquivo pessoal)
Durante a pandemia, Luis Eduardo atuou nos projetos de iniciação científica dos estudantes. “Tinha uma equipe de professores que preparou vários alunos para desenvolverem estes projetos. Eu tive a oportunidade de ajudar em uma ‘vaquinha’ com ex-alunos, possibilitando a participação dos jovens em férias de ciência no Brasil e em países da América do Sul e até Abu Dhabi”, revela ele.
“Estamos criando um fundo patrimonial do Culto à Ciência, com o objetivo de captar doações de pessoas físicas e jurídicas da cidade para serem geridas por uma fundação e serem aplicadas no colégio, em iniciativas pedagógicas, manutenção e ampliações”, conta o psicólogo, citando entre os investimentos, o novo auditório da instituição, que está sendo reconstruído com recursos estaduais. “Meu desejo é que tudo o que marca o colégio, principalmente o respeito e o amor que todos que passamos pela instituição sentem, seja transmitido e valorizado pelas gerações atuais e futuras da nossa sociedade”, conclui.
Mais informações e referências:
Sites: iabcampinas.org.br / www.academia.edu / www.cultoaciencia.net
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