Por Maria Angélica Pizzolatto
Uma ave exuberante. Penas vermelhas, bico, garras e cauda douradas. Tons fortes como o fogo. Fênix, uma ave mitológica, símbolo do recomeço, da esperança. Diz a lenda que as lágrimas da Fênix curavam as feridas, as doenças. Enquanto vivia entoava um lindo canto e sempre no final de sua vida cantava uma melodia triste. E uma transformação: a bela ave morria ao queimar-se e voltava a ressurgir, renascia de suas próprias cinzas. O significado disso é o do poder da vida sobre a morte. A Fênix se destaca na bandeira de Campinas, é para provar a força e a imortalidade do povo campineiro. Essa é uma referência às várias mortes e renascimentos do município abalado por seguidas epidemias de febre amarela.
Calendário da morte
1889, 1890, 1892, 1896 e 1897. O cruel calendário dos anos em que as epidemias de febre amarela assolaram Campinas. A primeira foi a mais devastadora e mudou para sempre o rumo da história da cidade que, no final do século XIX, viva um acelerado progresso econômico por causa de suas plantações de café. Em 1889, Campinas era a capital agrícola do estado e chegou a ser cotada para se tornar a capital na mudança do regime imperial para o republicano (15/11/1889). O trágico destino e o descaso das autoridades interromperam esses planos. Não foi por falta de aviso.
O jornal “Diário de Campinas” já alertava para os riscos de a “amarela”, que matava pessoas no Rio de Janeiro e em Santos, chegar a Campinas. Havia na época a certeza de que a febre ficaria restrita às cidades portuárias e não atravessaria a serra em direção ao interior do estado. Só que foi exatamente isso que aconteceu. O inimigo oculto, desconhecido, pegou carona nas bagagens dos imigrantes, principalmente italianos e portugueses, que chegavam em massa pelos trilhos da Paulista e da Mogiana para trabalhar nas lavouras de café no interior de São Paulo.
Rosa Beck, uma imigrante suíça, foi a primeira vítima. Contaminada ou no porto do Rio ou de Santos, Rosa viajou de trem até Campinas. Chegando aqui, já bastante doente, hospedou-se na casa de conterrâneos dela e donos da Padaria Suíça (onde hoje é a avenida Campos Sales). O escritor, historiador e presidente da Academia Campinense de Letras – a ACL, Jorge Alves de Lima, conta que a jovem de 24 anos morreu em pouco tempo, no dia 10/02/1889, e fez um estrago. Além dela, depois morreram os filhos do dono da padaria e clientes que frequentavam o local.
Essa e outras tristes histórias da febre amarela em Campinas povoam as páginas de três livros já publicados sobre o tema: “O Ovo da Serpente” (epidemia de 1889); “O Retorno da Serpente” (epidemia de 1890) e “A Serpente espreita Campinas” (de 1891, nesse ano a febre não deu às caras). Jorge Alves de Lima, de 82 anos, está escrevendo agora o quarto livro dessa saga. Ele vai abordar a epidemia de 1892.
Ao todo foram sete epidemias, umas mais, outras menos letais. A febre amarela de 1889 foi a pior, causou a morte de milhares de pessoas em Campinas. Naquele ano, viviam no município entre 15 a 18 mil habitantes. Apavorados, quem tinha dinheiro, como os senhores de fazendas, comerciantes ricos, fugiu principalmente para a São Paulo. Ficaram os pobres, ex-escravos e os imigrantes. O comércio foi fechado. Indústrias fecharam. A maioria das farmácias baixaram as portas. Escolas, também pararam. A cidade ficou deserta.
O historiador Jorge Alves de Lima lembra que “num único dia sobraram 5 mil moradores. Entre fevereiro e junho morreram 2 mil pessoas. No pior dia, 18 de abril, foram 58 mortes. “Comparando com a população atual de Campinas, é como se morressem 600 pessoas num único dia”, diz o escritor. Os números oficiais, como sempre no Brasil, não conseguem de fato revelar o tamanho do estranho nem hoje e muito menos no passado. Na somatória das piores epidemias de febre amarela chega-se ao número de 3.171 vítimas fatais: (1889 – 2 mil; 1890 – 471; 1896 – 700). E nos anos intermediários, a quantidade de mortes variou de 20 a 100 pessoas. Mas, segundo Jorge de Lima, “deve ter havido muito mais mortes porque muita gente que morava, trabalhava em fazendas, sítios foram enterrados por lá mesmo, sem saber a causa certa da morte. Então, a tragédia deve ter sido muito pior”.
Tragédia nas ruas
As cenas das valas coletivas sendo abertas para enterrar as vítimas da Covid-19 impactaram a todos. Imaginem então em um tempo onde não havia informação, conhecimento de qual era a causa de tantas mortes? No fim do século XIX, sem estrutura, sem conhecimento, corpos eram largados nas ruas; nas portas de casas; na frente do Cemitério do Fundão, hoje da “Saudade”. Apesar de abandonada, sem cuidado algum, existe uma área histórica do cemitério onde estão enterradas a maior parte das vítimas da febre.
Não havia estrutura nos hospitais e nem profissionais suficientes para atender a tantos doentes. Por medo, até os médicos abandonaram o ofício; dos 27 profissionais que trabalhavam na cidade, restaram “cinco ou sete”, lembra Jorge. Entre eles, Germano Melchert; Ângelo Simões e Costa Aguiar, este último adoeceu e morreu em Itu, ao visitar a mulher e filhos.
As marcas pelas ruas
Ao assistirmos, hoje, atordoados o avanço da Covid-19 pelo país, colocando o Brasil no epicentro dessa pandemia que mata diariamente milhares de pessoas, a percepção que se tem é de que isso nunca havia acontecido antes. Nós os brasileiros não somos conhecidos pelo apreço à memória, à nossa história. Nos esquecemos facilmente do passado. Mas o passado está impregnado nas ruas de nossas cidades, como Campinas.
Ao andarmos pela avenida Irmã Serafina nem nos damos conta de que é uma homenagem a uma freira, enfermeira, contaminada durante os cuidados aos doentes da epidemia de 1889.


Outro marco é a imagem de Dom Nery em frente à Catedral Metropolitana. Na época, ele era cônego e se uniu a uma mulher rica e dedicada aos mais necessitados, Maria Umbelina Alves Couto. A partir de 1892, os dois lutaram para criar o orfanato para abrigar os meninos órfãos da febre amarela onde hoje é o Colégio Liceu Salesiano. Já as meninas órfãs foram acolhidas no asilo dentro da Santa Casa de Misericórdia, ala construída em 1889 pelo médico Pereira Lima.
Até a descoberta do agente causador da febre amarela, os moradores de Campinas viviam de sobressaltos a cada início de ano, entre fevereiro e junho, período de propagação da doença. Sem saber como se contaminavam, não havia tratamento. Os hospitais sofriam com a falta de infraestrutura. Adoecer poderia significar morte certa ou contar com um “milagre”.
Apesar da Campinas dos barões do café ser considerada uma cidade bonita, elegante, as autoridades não primavam pelos cuidados com a limpeza; saneamento básico; pavimentação.
O escritor e historiador Jorge Alves de Lima conta que a Praça Carlos Gomes foi durante anos o lixão da cidade. Ali eram despejadas principalmente as fezes humanas carregadas pelos escravos recém-libertos. “E as pessoas circulavam em meio a toda essa sujeira”, afirma. Como ninguém sabia ao certo o que provocava a enfermidade, a tese mais aceita era a de que a poluição do ar dos pântanos e de matérias orgânicas em decomposição provocavam o contágio entre as pessoas. Por isso, em 1896, o governador do estado de São Paulo, Campos Salles, preocupado com a situação deplorável de cidades do interior, como Campinas, enviou para cá dois jovens: o médico sanitarista Emílio Ribas e o engenheiro Francisco Saturnino de Brito. Ao médico coube desenvolver medidas de saúde pública, como vistorias e desinfecção das casas; eliminar lixo; remover doentes para o isolamento, por exemplo. Como Campinas tinha um solo repleto de águas paradas, córregos e riachos que sempre transbordavam nos períodos quentes de chuva, Francisco Saturnino de Brito iniciou o trabalho de drenagem e a secagem do solo; novo plano de abastecimento de água; coletor de esgoto; canalização de córregos, como o que tem início na Praça Largo do Café, passa pelas ruas Barão de Jaguara – César Bierrembach – avenida Anchieta até a Orosimbo Maia. Essa obra ajudou a eliminar a exposição à água e à sujeira onde o mosquito se proliferava, mas ainda não se sabia que o transmissor era o mosquito.
Inimigo desvendado
A certeza só veio na virada do século XX (1902-1903). O médico cubano Juan Carlos Finlay descobriu que o mosquito Aedes aegypti era o responsável pela transmissão da febre amarela, o mesmo que transmite a dengue. O desenvolvimento e a produção da vacina só viriam anos depois, em 1937. Mas toda essa experiência com as epidemias de febre amarela ao longo dos últimos anos do século XIX, de certa forma colaborou para que a cidade estivesse mais preparada para enfrentar outro inimigo mortal: a gripe espanhola.
Novo inimigo: a gripe espanhola
As fronteiras, divisas, limites não são barreiras que impeçam o avanço de mosquitos, vírus, bactérias, por isso tantas pandemias. As pandemias são epidemias de doenças que se alastram ao redor do mundo. No início do século XX mais uma pandemia deixaria no mínimo 50 milhões de mortos no mundo. Os primeiros casos surgiram, provavelmente, nos Estados Unidos, mas passou a ser chamada de “gripe espanhola” porque a imprensa da Espanha, sem censura, divulgava as notícias sobre a doença que infectava, principalmente, países que participavam da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Foram três “ondas” da gripe espanhola: a primeira em março de 1918; a segunda em agosto de 1918 e a terceira onda, em janeiro de 1919. A suspeita é que a tropa norte-americana teria levado a doença ao continente europeu.
No Brasil, a doença chegou, novamente, através de regiões portuárias e se espalhou. Ao menos 35 mil brasileiros morreram vítimas da gripe espanhola. No estado de São Paulo foram mais de 12 mil mortes. Em Campinas, em 1918, mais de 7 mil pessoas foram infectadas e 209 morreram. Números pequenos comparados à devastação das epidemias do século anterior. Mas pode-se dizer que isso também foi um resultado de mudanças de hábitos da população e de políticas sanitárias das autoridades que aprenderam na dor da perda de milhares de vidas e do temor de Campinas quase ter sido riscada do mapa durante o flagelo da febre amarela.
Na lenda, a Fênix sempre renasce de suas cinzas, mas não dá para contar com isso na vida real. É preciso que haja seriedade e investimentos em políticas públicas de saúde, educação e na ciência para combater esses inimigos invisíveis que não deixam de provar a cada dia como um “simples” vírus pode colocar o planeta de joelhos.
Fotos antigas da cidade cedidas pela EPTV Campinas
Foto do historiador Jorge Alves de Lima: arquivo pessoal
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