Woody Allen, o renitente cineasta de 84 anos completados neste 1º de dezembro, dirige desde meados da década de 1960 e está próximo de emplacar 70 filmes – alguns deles, obras-primas. O restante se divide entre muitas produções consideradas de alta qualidade e uma pequena incidência filmes tidos como ruins. O inigualável saldo da carreira do cineasta desperta, mesmo inconsciente, maus sentimentos em muita gente.
O recém-chegado ao Brasil “Um Dia de Chuva em Nova York” (EUA, 2019), em cartaz em Campinas, exemplifica o desconforto que a proficuidade e o alto nível da produção de Woody Allen provoca: o público o repele por conta da turbulenta vida pessoal, a classe artística o pressiona (vários atores do elenco doaram o cachê recebido pelo trabalho para demonstrar publicamente que estão com ‘as mãos limpas’) e a crítica o desdenha acusando-o de ter se esgotado e que o filme mimetiza longas anteriores e nada de novo apresenta.
A massa, que inclui os artistas, age como massa e reverbera os pecados do ser humano Allen. Não se trata de justificá-los, pois são injustificáveis. Ocorre que, para julgar, é preciso estar imune a pecados – e ninguém está. Entretanto, as pedras foram lançadas e os acusadores nem sequer se preocuparam em olhar, primeiro, para dentro de si mesmos, antes de atirá-las e ainda incidiram em outro erro: misturaram obra com vida pessoal.
Quanto aos críticos, estes exigem algo que nem o próprio crítico consegue, ou seja, reinvenção a cada novo trabalho – o que não ocorre em nenhuma atividade. O escritor escreve livros similares, assim como o compositor (incluindo os geniais Mozart, Bach e Beethoven) trafega quase sempre pelas mesmas linhas. Bach que, com mais mil composições, obviamente se repetiu e se copiou.
Porque subverteu o humor, tirou-o da banalidade peculiar e fugiu do grotesco, matéria-prima do chamado humor popular, e porque sobrevive há cinco décadas exercitando-se na sofisticação e inteligência (e se isso for considerado elitista, que seja) Woody Allen deveria ser recebido com tapete vermelho a cada novo filme.
“Um Dia de Chuva em Nova York”, sim, é verdade, tem tudo o que já vimos na extensa filmografia de Allen: Nova York, a aldeia dele, os atores que o encarnam, pequenas proposições de temas que, invariavelmente, resultam em conflitos (alguns poucos consistentes, como neste caso), odes a alguns de seus ídolos, inúmeras citações (aqui, excessivas), declarações explícitas de amor e, claro, o humor desconcertante (apesar de pouco afiado e nem sempre engraçado). Seria como se Bach estivesse apresentando novo prelúdio muito parecido com outro composto anos antes.
Melancolia
Talvez fosse desnecessário destacar o enredo pouco criativo e o desfecho preguiçoso, mas vamos a ele. O estudante Gatsby (o ótimo e belo Timothée Chalamet) e a namorada dele Ashleigh (Elle Fanning) vão fazer romântica viagem a Nova York. Ela leva consigo a tarefa de entrevistar para o jornal da universidade o famoso diretor de cinema Roland Pollard (Liev Schreiber). Deslumbrada, se perde em meio a tantas atrações da grande cidade, enquanto Gatsby encontra a irmã (Selena Gomez) de antiga namorada.
O que chama mesmo a atenção no filme é um outro traço marcante da obra do cineasta e que só reforça a qualidade do humor dele: o toque de melancolia de alguém chamado de humorista – ele é mais que, apenas, humorista. Quando Gatsby, depois de um passeio de charrete, adentra o Central Park a pé, sozinho, eis o melancólico Woody Allen dos grandes momentos – “Manhattan” (1979), “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985), “Meia-Noite em Paris” (2011).
Naquele instante, o cineasta (persona) e o ser humano Allen revelam as próprias sombras, a ponte dele sobre águas turbulentas, o lado escuro de alguém tão controverso. E, nesse instante (para quem está disponível e receptivo), nos tornamos tão humanos quanto ele e sujeitos às mesmas paixões. Não tem o mesmo peso das obras citadas acima; trata-se de um lampejo. Mas ali está o grande cineasta. E, para mim, vale o filme.
O que dizer do sujeito que escreve diálogos brilhantes a partir de um personagem que se desespera porque teme ser afetado pela expansão do universo? Por meio desse personagem de “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (1977), Woody Allen transforma o conceito científico em graça enviesada e subverte o humor. Qualquer bobagem faz o animal homem rir. Allen gera desconcerto milésimos de segundos antes de provocar o riso. Nisto reside a genialidade dele.
Em futuro bem próximo não haverá o anual filme de Woody Allen. O público que o repele por questões morais poderá ficar em paz, finalmente, e parte dos críticos não precisará gastar energias para chamá-lo de repetitivo, pouco inspirado etc. Meu antídoto contra o clichê é usar outro clichê. “Um Dia de Chuva em Nova York” está longe de mostrar um cineasta em sua melhor forma; contudo, retomando o que foi dito no início deste texto: o pior Woody Allen é melhor do que o muito que se vê nas telas do mundo.
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