Blog do Vinho

Os terroristas do vinho numa França sem glamour

por Suzamara Santos
Publicado em 26 de outubro de 2019

Membro do Crav põe foto em posto de venda de vinhos espanhóis. Foto: Raymond Roig/AFP

Essa é para quem gosta de maratonar na tevê. Dia desses, estacionei o controle na série Rotten (Netflix), um conjunto de documentários focados no alimento. Como o título já prenuncia, aqui não há glamour. Há, sim, um mergulho profundo na produção e comercialização de alguns alimentos que frequentam a nossa geladeira sem levantar suspeitas do tortuoso caminho que os trouxe até nós. Descontando um tom mais estridente aqui e ali, os documentários colocam à mesa polêmicas atuais que deveriam nos causar mais preocupação.

Estão disponíveis duas temporadas, totalizando 12 episódios que podem ser assistidos em qualquer ordem, de acordo com a sua curiosidade. Fui direto ao Reinado do Terroir, que fala do vinho a granel produzido na região de Languedoc-Roussillon, sul da França. Lá, alguns produtores, muito próximos a terroristas, pegam literalmente em armas para sobreviver à guerra pelo mercado popular, travada com rivais que brotam no próprio território, na Espanha e, mais recentemente, na China.

Criação e abate de animais é tema do episódio Raposas no Galinheiro

Rotten vai longe. Alguns temas nos soam inusitados, como A Guerra do Abacate, Bafo de Alho, Maconha Comestível e Alergia ao Amendoim. Outros, há muito nos despertam desconfiança, a exemplo de Águas Turbulentas, Chocolate Amargo, Raposas no Galinheiro, Doce Negócio. Corrupção, exploração de trabalhadores, violência e fraudes são alguns ingredientes servidos sem parcimônia aos curiosos.

A visita ao Languedoc-Roussillon, por exemplo, não nos permite ver o vinho francês como aprendemos por aqui, ou seja, um produto sofisticado, símbolo de bom-gosto e cultura elevada. Não, o jogo é bruto. Mostra o documentário que estamos na região mais produtiva do mundo, status traduzido em números: responsável por 1/3 do vinho francês, 5% do vinho bebido no mundo, 1,7 bilhões de garrafas ao ano. Nunca ganhou aura de produto de luxo e poucos são os produtores que tentam (ou querem) obter esse diferencial.

E o que há de errado com esse mercado? Justamente a concorrência. Há um oceano de vinhos baratos sendo produzidos fora da França (Austrália, Chile, Estados Unidos). Pior, há um vizinho especialmente incômodo: a Espanha, que tem como armas poderosas a mão de obra e os custos baixos. Esse vinho espanhol que tira o sono dos produtores do Languedoc-Roussillon chega aos borbotões ao mercado e, muitas vezes, tentam agarrar o consumidor com rótulos exibindo castelos que remetem aos vinhos franceses. Para cumprir a legislação, malandramente gravam a procedência de “vinho Espanhol” em letras quase invisíveis de tão miúdas. Há casos ainda mais audaciosos. Não faz muito tempo, foi apreendida uma leva de 10 milhões de garrafas de rosés espanhóis com rótulos franceses. É o clássico “gato por lebre”.

Grupo muçulmano Hui foi realocado para trabalhar nos vinhedos de Ningxia

Nos últimos anos, um inimigo ainda mais ameaçador se ergueu nesse turbulento ambiente: a China. E aqui cabe lembrar que o gigante asiático é hoje um dos grandes consumidores de vinho francês. O problema é que o povo chinês está gostando tanto de tomar vinho que não só se dispõe a adquirir marcas tradicionais da França (a exemplo do Chateau La Bastille, desde 2015 nas mãos de Nan Ping Gao), como resolveu elaborar seu próprio produto. Ou seja, em breve, o gigantesco mercado chinês estará bebendo seu próprio vinho.

É bom ficarmos todos de olho na Província de Ningxia, uma remota região de centenas de quilômetros de deserto no Centro-Norte da China, pois lá está sendo gestado um vinho que tem tudo para alcançar as gôndolas do planeta inteiro. Basta ver a rapidez com que a paisagem de “superfície lunar” está sendo substituída por vastos e produtivos vinhedos. O trabalho braçal é feito pela minoria muçulmana Hui que foi realocada para desbravar a região em troca de salário baixo e lugar para morar. Por enquanto, o maior entrave do vinho chinês é a desconfiança. O país, por tradição associado a falsificações e fraudes, vai ter trabalho para convencer o consumidor que o seu produto merece crédito. E isso é uma questão de tempo. Já tem made in China ganhando prêmio importante por aí.

O documentário insere nesse ambiente a atuação do Comitê Regional d’Action Viticole (CRAV), que reúne pequenos produtores do Languedoc-Roussillon em defesa de seus interesses comerciais. Não sem razão, o grupo é frequentemente apresentado como terrorista. Armados com machados, coquetéis molotov, bombas de gás lacrimogênio, marretas e substâncias inflamáveis, o comitê se dedica a destruir armazéns de importadores que julgam desonestos, vinícolas de produtores que consideram traidores, distribuidores de vinhos concorrentes, enfim, formam um time que vai à luta armada literalmente.

Paisagem de Languedoc-Roussillon: vastos vinhedos e vinho a granel

Eles já fizeram tanto barulho, que o coronel líbio Muamar Kadafi, disposto a derrubar a república francesa, chegou a oferecer financiamento e armas ao grupo. Que recusou felizmente. São impressionantes as cenas de um ataque do CRAV à distribuidora Vinadeis, em 2014, gravadas por um de seus membros – não sobrou nada. Entre abril de 2016 e agosto de 2017 – período relativamente recente, portanto – o CRAV somou 32 atos de violência realizados na região.

Em 2017, um comboio com mais de 30 vitivinicultores devidamente paramentados para atacar, foram interceptados numa estrada de Bordeaux. E Rotten dá voz a esses personagens, resgata episódios antigos, consulta estudiosos, apresenta números e, assim, amplia o mapa do vinho francês por territórios pouco explorados. Está aí, uma sugestão de entretenimento para quem não tem medo de encarar vinho a granel.

 

 

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