Blog do Chef Mané

Uma panela para cada preparo

por Manuel Alves Filho
Publicado em 16 de janeiro de 2018

No princípio, era a pedra esculpida. Depois, o barro, o vidro e a cerâmica, estes produzidos após o domínio do fogo. Desde os primórdios, o homem sentiu a necessidade de confeccionar utensílios para armazenar e, posteriormente, cozinhar suas refeições. Com o tempo, percebeu que, dependendo do material utilizado, os alimentos ganhavam aparência, sabor e textura diferenciados. Nos dias que correm, a ciência aprofundou esses conhecimentos e fez outras descobertas, descortinando, por exemplo, como se dá a interação entre o ferro no qual a panela foi forjada e o arroz nela cozido. A relação entre os componentes desta e daquele é tão significativa que pode trazer benefícios ou malefícios à saúde, segundo uma série de variáveis, que vão do tempo de cocção às restrições ou necessidades alimentares do comensal.

A afirmação pode parecer óbvia, mas nunca é demais reforçá-la: as panelas apresentam propriedades diferentes entre si, dependendo do material com que foram produzidas. Existem, por exemplo, as que são indicadas para o cozimento de alimentos secos e as mais recomendadas para caldos e ensopados. “Se a pessoa estiver montando a casa ou trocando os utensílios da cozinha, é recomendável que ela compre peças avulsas, produzidas com diferentes matérias-primas, que um jogo feito de um único material. A ideia é tirar o melhor proveito de cada uma”, recomenda Késia Diego Quintaes, doutora em Alimentos e Nutrição pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

De acordo com a nutricionista, que escreveu dois livros sobre o tema, a opção por objetos confeccionados com diferentes materiais possibilita conferir aos alimentos qualidades sensoriais distintas. A especialista observa que peças confeccionadas em pedra-sabão são indicadas para o preparo de alimentos de cozimento rápido, como arroz ou frango com quiabo. Quanto menor o tempo de contato, menor a taxa de transferência dos elementos que compõem o utensílio para os alimentos, como o níquel, metal tóxico. Além disso, ela é especialmente útil em dias frios, pois é considerada inerte termicamente. Ou seja, demora para esquentar, mas também demora para esfriar, o que mantém a refeição quente por longo tempo. Também tem a vantagem de poder ser levada tanto ao fogo quanto ao forno, visto que é refratária e suporta temperaturas elevadas.

Recomendada igualmente para o uso em dias frios, por ser inerte termicamente e preservar a temperatura das preparações, a panela de cerâmica se presta muito bem ao cozimento de alimentos aquosos, como sopas e molhos, pois não libera substâncias nocivas à saúde. “Pode ir ao fogo, ao forno convencional e também ao forno micro-ondas, já que não possui nenhum componente metálico. Além disso, por ser atóxica e não promover a migração de metais para os alimentos, ainda pode ser empregada para guardar comida na geladeira”, detalha Késia.

Propriedades semelhantes às da cerâmica têm os utensílios em vidro, que ainda são ótimos para fazer frituras por imersão. “Mas é bom não preparar alimentos com baixo teor de água nas panelas de vidro porque eles podem queimar”, adverte a pesquisadora. Bastante comum, o problema ocorre porque o material transmite de forma muito rápida o calor para os alimentos, que, se forem mais secos, poderão ficar incinerados.

Dois dos modelos mais utilizados pelos brasileiros são as panelas em alumínio e em aço inoxidável. O primeiro, pondera a nutricionista, deve ser destinado para a feitura de refeições rápidas, como doce de abóbora, ou secas, como farofa. Também é apropriado para fazer frituras por imersão. “Quanto mais ligeiras e menos molhadas forem as receitas, menor a possibilidade da transferência de metais para os alimentos”, pontua a nutricionista.

A máxima segundo a qual não se deve apurar o molho de tomate nos apetrechos de alumínio, porque a preparação ficaria muito ácida, não tem nada de mito, assegura Késia. “Como o molho de tomate é aquoso e ácido, há uma grande transferência de alumínio da panela para o alimento, o que faz com que este fique com um sabor ‘metálico’”, assinala. Já a panela em aço inoxidável, por resistir à corrosão, aceita bem a elaboração de molhos, carnes e massas e pode ser utilizada para guardar alimentos na geladeira, exceto aqueles que apresentem, por exemplo, alto teor de sal (bacalhau), que é um agente corrosivo. “Também não é recomendável fazer frituras por imersão nessas panelas porque elas tendem a liberar níquel, um dos componentes do aço inoxidável, o que pode ser prejudicial a pessoas sensíveis a esse elemento”, avisa Késia.

A chef Joana D’Arc Lacerda, professora de gastronomia da Faculdade Politécnica de Campinas (Policamp), tem um apreço especial pela panela de barro, que considera ideal para ensopados, especialmente os de longo cozimento. Segundo ela, pratos com essas características precisam de tempo para serem apurados e atingirem a textura almejada. “Além disso, o utensílio ajuda a manter o preparo quente por bom tempo. A panela de barro exige somente um grande cuidado: deve ser mantida sempre limpa e seca, para evitar o desenvolvimento de micro-organismos e o acúmulo de sujeira nos seus poros”, instrui. “Já eu gosto muito das panelas de ferro fundido. Dão um arroz malandro de lamber os beiços”, acrescenta o chef português Heitor Antunes, em referência a um prato típico lusitano.

Benefícios e riscos

Preferências à parte, as panelas não interferem apenas na aparência, sabor e textura dos alimentos. Elas também influenciam na qualidade da refeição e, consequentemente, na saúde das pessoas. Você deve se lembrar da sua avó asseverando que fazer comida na panela de ferro ajuda a combater a anemia ferropriva, doença que afeta a produção de glóbulos vermelhos, células responsáveis por transportar oxigênio para todos os tecidos do corpo. Pois é, ela sempre esteve certa.

A cocção de carne, arroz, batata e outros alimentos em utensílios produzidos com esse material potencializa a absorção do ferro, um nutriente importante para o organismo. Ocorre que, também como as nonas advertiam, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. De acordo com Késia, a panela de ferro não deve ser utilizada indiscriminadamente porque pode favorecer a assimilação excessiva desse elemento, situação que pode ser danosa principalmente para quem apresenta quadros de hemocromatose ou dislipidemia, males caracterizados, respectivamente, pela presença de níveis elevados de ferro no tecido e de gordura no sangue.

O ato de cozinhar, tão em moda na atualidade, representa uma alquimia, como lembra a nutricionista. De acordo com ela, que está radicada na Espanha, onde atua como professora visitante na Universidade de Valencia, muitas reações acontecem entre os componentes dos alimentos e os elementos que constituem os materiais das panelas. “Esta influência mútua pode ser favorecida pela temperatura [aquecimento], tempo de contato, acidez e também pelo teor de água do alimento que está sendo preparado”, ratifica.

Alimentos mais secos, como a farofa, tendem a ser mais inertes, a despeito do material da panela. “Os mais úmidos, como molhos e sopas, acabam precisando de mais atenção, pois tendem a receber maior teor dos componentes da panela. A temperatura também colabora em menor escala em relação ao teor de água para a transferência de componentes. Já a acidez dos alimentos influencia no sentido de que, quanto mais pronunciada esta for, maior será a interação com determinados materiais”, anuncia Késia.

No quadro que acompanha este texto, é possível verificar as indicações e restrições às principais panelas disponíveis no mercado. Uma delas, entretanto, merece uma referência especial, a confeccionada em cobre. A nutricionista sublinha que, pela legislação brasileira atual, este metal não deve entrar em contato direito com o alimento, dado que pode ser facilmente transferido para a comida, oferecendo riscos para que o consumidor ingira quantidades tóxicas. O consumo excessivo de cobre pode causar desordens neurológicas e danos aos rins e fígado, entre outros problemas. “A única forma segura de utilizar uma panela desse material é por meio do contato indireto, ou seja, da aplicação de um revestimento, como aço inoxidável ou cerâmica, que isole o cobre do alimento”, orienta.

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