Blog do Vinho

O vinho do meu pai e o tempo aprisionado

por Suzamara Santos
Publicado em 12 de agosto de 2017

Devo admitir que sou meio negligente com datas comemorativas. A sucessão de efemérides que salpicam todo o calendário anual me dá uma certa preguiça e acabo deixando passar em branco boa parte. Com o Dia dos Pais ocorre uma coisa curiosa. Meu pai já não está por aqui há uns bons anos. Não conheci os meus dois avôs. O mais próximo de mim era o pai do meu filho, Marcelo, que também se foi bem antes do prazo e com quem aprendi, lá atrás, que Cabernet Sauvignon e Chardonnay eram nomes de uvas (nessa época nem sonhava em escrever sobre vinho). Assim, as oportunidades de erguer um brinde comemorativo neste segundo domingo de agosto são precárias.

E veja que engraçado. Como muitos sabem, fui responsável por uma coluna semanal sobre vinhos, a Líquido & Certo (Revista Metrópole, Correio Popular), por quase 16 anos. Pois durante esse longo período falando de grandes rótulos, comentando degustações nobres e compartilhando minhas descobertas com um público diversificado, o texto que mais provocou reações (positivas, felizmente) por parte dos leitores foi o que intitulei de O Vinho do Meu Pai. E o vinho em questão era o popular Sangue de Boi, seco, de garrafão, tomado em um copo qualquer. Não sei mais que sabor ele tem, nem de seus aromas, mas é a única referência de vinho que tive durante a infância e adolescência – suspeito que para muitas famílias brasileiras também.

Era um texto nostálgico, não exatamente feliz, que pinçava episódios distantes, como a preparação para as caçadas que o meu pai, seu João, empreendia com paixão, pois era o seu único divertimento (não meu lembro de outro). A casa, na pequena Camanducaia, em Minas, tinha um generoso quintal, onde reinavam os cães perdigueiros. Na minha visão, eles eram dotados de uma espécie de “inteligência” especializada em interpretar com correção sons e movimentos mínimos. Em madrugadas, quando meu pai acendia a primeira luz da casa – a da despensa, onde ficavam espingardas, cartuchos e embornais -, dando início aos movimentos para caçada, os cachorros punham-se em uníssona sinfonia de uivos, antecipando a aventura próxima de “levantar tocas” de pacas e catetos pelas matas da Mantiqueira. Era um tempo em que não se sabia de Ibama, menos ainda de crimes inafiançáveis.

Hoje, esse hobby está praticamente extinto, assim como rarearam os habilidosos cães perdigueiros. Sobre o resultado da aventura paterna, posso dizer que nunca gostei de ver os animais silvestres abatidos na mesa da cozinha, sendo tosquiados e esquartejados para compor as refeições da família por vários dias seguintes. Nessas ocasiões, procurava ficar invisível para não ser chamada a colaborar com o ritual. São cenas fragmentadas, intimamente conectadas ao Sangue de Boi. “Seco, porque o suave tem açúcar de cana e dá dor de cabeça”, alertava o seu João, evocando um empírico e rudimentar conhecimento de vinho. “Tinto, porque dá mais certo com a paca”, complementava, insinuando a harmonização.

Era basicamente dessas reminiscências familiares que discorria o texto que sensibilizou os leitores da Líquido & Certo. Isso me abriu uma fresta de observação do mundo vinho que até então não tinha percebido. O vinho é uma grande experiência. Ouvi uma vez que nenhuma outra bebida tem a mágica particularidade de aprisionar o tempo. É verdade. Seja pelas safras antigas capturadas nos grandes rótulos de guarda, seja pelos aromas esquecidos numa gavetinha confusa da memória que o vinho às vezes liberta, seja pelas passagens da vida aferidas pela categoria dos vinhos que tomamos à medida que envelhecemos (ou evoluímos).

Hoje, são muitos os vinhos que me encantam. Já tomei grandes rótulos, fiz ótimas amizades em torno de uma garrafa e sou sempre desafiada a buscar conhecimento. E nesse agosto ensolarado, a Mantiqueira das pacas e dos catetos apreciados pelo homem tradicional e rígido que foi meu pai se transformou na Mantiqueira da Syrah e da Sauvignon Blanc que tem entusiasmado o vasto mundo da enofilia. O Sangue de Boi não frequenta a minha taça, mas ele tem todo o meu respeito, uma vez que é história. Feliz Dia dos Pais!  

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