Como todo fã de cinema ou série, costumo reparar nas falas, na interpretação dos atores, no trabalho de câmeras, na trilha sonora, no figurino, no cenário, nas locações, enfim, em tudo o que envolve um bom entretenimento. Mas desde quando comecei a me interessar por vinhos e, por consequência, pelo universo de bebidas, observo também o que vai no copo dos personagens. Já na primeira temperada de Downton Abbey (série da Netflix), por exemplo, passei a pescar as citações a vinho do sisudo mordomo Carson (Jim Carter), responsável pela adega da aristocrática família Crawley (a obra até já me inspirou a falar sobre decantadores neste blog, lembra-se?).
Nos episódios recentes, vi e revi a cena em que Carson tenta agradar o conde Robert Crawley (Hugh Donneville) oferecendo-lhe um Château Chasse-Spleen, legítimo Bordeaux, elaborado com Cabernet Sauvignon, Merlot e Petit Verdot (foto, à esquerda). O vinho, de boa estirpe, é gentilmente recusado pelo patrão, pois este se convalesce de uma cirurgia de úlcera. Aparentemente, a sequência não tem nada demais. E é justamente essa discrição nas abordagens que me agrada em Downton Abbey. O vinho aparece sutilmente, apenas para ilustrar o refinamento do nobre clã. Não há ênfase desnecessária, tampouco excesso de menções a grandes rótulos, o que resultaria em entediantes e artificiais clichês. Eles surgem, aqui e ali e, talvez, só os enófilos os notem e anotem. É um grande acerto, pois confere espontaneidade e coerência à cultura do vinho, que os ingleses historicamente tanto prezam.
Em outro momento, ainda na última temporada, a mansão Downton Abbey recebe uma notícia importante e Carson propõem para uma comemoração entre patrões e empregados com o popular champanhe Veuve Clicquot, “armazenado na área fria da adega”. Há nessa fala uma informação correta sobre o serviço do vinho, no caso um espumante, que deveria ter sido resfriado previamente, mas que se apresenta viável para uma ocasião inesperada, já que foi guardado em local apropriado. E assim, vamos conhecendo a adega dos Crawley, onde habitam grandes safras de Chateaux Margaux e Haut-Brion, a expertise do mordomo e o gosto dos Crawley.
Talvez o champanhe seja o vinho mais embriagador do cinema. James Bond, por exemplo, adora coquetéis clássicos, mas desde 1973, com Roger Moore debutando na pele do sedutor espião inglês, em Com 007 Viva e Deixe Morrer (foto à direita, com Jane Seymour), a sua bebida preferida é o champanhe Bollinger, não por acaso, o mesmo que aplaca a sede dos membros da coroa inglesa – de verdade – há mais de cem anos. A grife passou a ser estrela dos filmes de 007 por acaso, depois que a Moët & Chandon se recusou a ceder algumas garrafas solicitadas pela equipe de filmagem, como cortesia. Mais generoso e inteligente, o presidente da Bollinger ofereceu suas garrafas não só para as cenas, como também para a festa de avant-première. Surgiu aí uma proveitosa parceria, que já emplacou pelo menos 13 filmes.
Hoje, sempre que assisto a um 007, aguardo ansiosamente o momento em que Bond vai pedir o seu Bollinger. É algo como esperar a aparição aleatória do mestre do suspense Hitchcock em seus filmes, o que confere um bem-vindo tom de brincadeira à sua cinematografia. Aqui, uma curiosidade: uma das obras mais antigas e menos citadas de Hitchcock, é Champagne, de 1928, uma comédia britânica muda sobre milionários, estrelada por Betty Balfour, Gordon Harker e Jean Bradin.
Seja de que marca for, temos reconhecer que não há bebida mais conectada com o glamour de Hollywood do que o champanhe. Nas décadas de 40 e 50, ele era servido naquela taça rasa e aberta que, mais tarde, perdeu espaço para as alongadas flûte, consideradas mais adequadas por preservar por mais tempo a temperatura e as borbulhas da bebida. Basta ver a cena encantadora de Marylin Monroe e Tony Curtis (se passando por milionário, na foto à esquerda), no apimentado Quanto Mais Quente Melhor, de Billy Wilder, uma das grandes comédias já rodadas no cinema.
Os ambientes boêmios há muito se mostram cenários perfeitos para os romances da telona. Quem não se transportou para o Ricky’s Café, de Marrocos, no clássico Casablanca, onde Humphrey Bogart e Ingrid Bergman se derretiam ao som de As Time Goes By? Clima noir, mulheres magníficas, homens elegantes e, claro, champanhe, sempre champanhe e mais champanhe. Já um amante da coquetelaria, certamente não deixaria passar as várias vezes em que o clássico Kir Royal aparece no filme Match Point (2005), de Woody Allen, com Jonathan Rhys-Meyers, Matthew Goode, Scarlett Johansson e Emily Mortimer. Oras, o Kir Royal nada mais é do que champanhe brut gelado com creme de cassis. É a bebida que a protagonista pede em seu restaurante preferido.
Nem só de perlage sobrevivem os heróis e heroínas da sétima arte. Em Que o Céu a Condene (Deception, 1946), dirigido por Irving Happer, com Bete Davis, Paul Henreid e Claude Rains, há uma passagem que faria salivar os amantes de vinhos clássicos franceses. Acontece num restaurante sofisticado, quando um dos personagens humilha o seu humilde rival, pedindo vinhos caríssimos como Romanée-Conti, Burgundy e Hermitage.
Bem… Como se vê, uma boa produção para as telas costuma ensinar muito sobre o universo dos prazeres etílicos. Mas essa conversa está longe de terminar. Já estou pensando numa seleção de filmes em que o papel do vinho vai além de coadjuvante e assume centro dos holofotes. São ótimas fontes de informação sobre história, geografia, enologia e comportamento. E o que é melhor, são bem acessíveis. Ah, sim… Comecei a assistir Gypsy (também Netflix) e já reparei que a protagonista, a psicóloga Jean, vivida por Naomi Watts, adora Chardonnay (qualquer um). Saúde!
*Texto escrito na madrugada de 06/07/2017
Newsletter:
© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74