Blog do Chef Mané

Conexão Itália-Brasil

por Manuel Alves Filho
Publicado em 9 de maio de 2017

O mestre em estilos de cerveja e beer sommelier Maurício Beltramelli não é um polemista por definição, mas suas opiniões costumam suscitar reações acaloradas por parte dos amantes do nobre líquido. Estudioso do tema, com dois livros publicados, ele não se furta a analisar os diferentes aspectos relacionados ao universo cervejeiro, sempre com alta dose de conhecimento e algumas pitadas de argúcia. Baseado na Itália desde outubro de 2016, onde presta consultoria, ministra cursos e organiza jantares harmonizados, Beltramelli aceitou o convite do Blog do Chef Mané para falar com exclusividade sobre o atual momento cervejeiro italiano e suas impressões, desde lá, sobre a cena brasileira. “A Itália é um país no qual parece que as pessoas já nascem com a gastronomia no sangue. Tudo aqui vira em torno da boa mesa. Por causa dessa herança, todo mundo aqui já possui predisposição de experimentar coisas novas. No Brasil, nosso desafio é sempre convencer o consumidor a experimentar cervejas diferentes. Aqui, eles já nascem com essa curiosidade”, afirma. Na entrevista que segue, o especialista fala muito mais sobre cerveja, Itália e Brasil. Abra a sua breja preferida e acompanhe o bate papo.

O que o motivou a deixar o Brasil? Quando chegou à Itália?

Eu já conhecia o país de muitas outras vezes que estive aqui. Quando me tornei profissional de cervejas, acabei conhecendo vários cervejeiros daqui. Nos encontrávamos em eventos cervejeiros pelo mundo e, como falo razoavelmente bem o idioma, pude entrar em contato com o que está sendo feito aqui. Foi um passo para que eu entendesse que a Itália é um dos lugares no mundo onde os estilos de cerveja estão se desenvolvendo mais proficuamente, com doses de criatividade que rivalizam com a nova escola cervejeira americana. Não demorou para que esse interesse fosse correspondido e um cervejeiro me convidasse para vir prestar consultorias no país. Aceitei sem pestanejar, porque sentia que precisava de uma experiência internacional na minha carreira. Cheguei aqui em outubro do ano passado.

Em que cidade está baseado e que atividades tem desenvolvido aí?

No momento estou residindo em Lecco, na Lombardia (norte da Itália). Desenvolvo minhas atividades principalmente em Erba, a 10 minutos daqui. Basicamente presto consultoria cervejeira, além de ministrar palestras e jantares harmonizados com os produtos desta empresa.

Como “um local”, seu olhar foi despertado para temas e situações que o olhar de um turista jamais perceberia? Pode dar exemplos?

Sem dúvida. O ambiente de negócios daqui é diametralmente oposto ao do Brasil. Certamente não estamos no país mais desenvolvido da Europa, mas, em comparação com o nosso, parece que aqui tudo funciona, pouca coisa emperra: prazos são cumpridos, contratos são respeitados, pagamentos são feitos em dia, entregas de insumos e mercadorias saem e chegam como previsto. O empresário tem muito mais tempo e energia para criar e fazer negócios, sem tantos entraves. Sem falar na segurança, tanto jurídica quanto pessoal. Aqui não há roubo de cargas, não há necessidade de escolta. Daqui de longe, o Brasil fica meio “selvagem” nesses aspectos.

Nesses meses de Europa, que observações você já fez sobre a cena cervejeira? Faça alguns destaques.

A Itália é um país no qual parece que as pessoas já nascem com a gastronomia no sangue. Tudo aqui vira em torno da boa mesa. Por causa dessa herança, todo mundo aqui já possui predisposição de experimentar coisas novas. No Brasil, nosso desafio é sempre convencer o consumidor a experimentar cervejas diferentes. Aqui, eles já nascem com essa curiosidade. Nos supermercados, as cervejas artesanais ocupam muitas vezes o mesmo setor dos vinhos. Embora o vinho ainda seja de longe a bebida favorita, os italianos têm um respeito muito grande por cervejas artesanais.

Há diferenças expressivas entre os países europeus em relação à cultura cervejeira? Quais?

Em geral, países que possuem maior tradição cervejeira, como Alemanha, Bélgica e Inglaterra, têm seus estilos próprios e maneiras diferentes de consumir. Já a Itália, por ser um país gastronômico por excelência, transita bem entre as diferentes inspirações das escolas cervejeiras mais tradicionais.

Entre essas observações e vivências, o que você diria que serve de exemplo ao Brasil?

Vejo no Brasil uma necessidade entre alguns produtores de criar uma “identidade brasileira” na cervejaria. Há um certo desespero em precisar criar um estilo próprio, um insumo exclusivo. Já na Itália e na Europa em geral, esse desenvolvimento “autóctone” é feito de uma maneira mais natural, respeitando o tempo e a ordem natural dos fatores. Precisamos primeiro fazer com que mais cervejarias façam bons produtos antes de tentar criar algo que o tempo ainda não nos deu.

Há algo que definitivamente não devemos tomar como exemplo?

A teimosia dos italianos em fazer apenas cervejas não pasteurizadas. Hoje há processos eficazes e modernos que podem fazer com que a cerveja pasteurizada chegue mais longe e com mais qualidade que antes, possibilitando que mais gente aprecie o produto. Já peguei por aqui muita cerveja que eu sei que é ótima, mas contaminada pela falta de pasteurização.

Tem planos de retornar ao Brasil?

Sim, claro! Estou aqui para estudar, ganhar mais experiência e dividir com os cervejeiros, assim como com os meus alunos e leitores do Brasil. Sou um profissional a serviço do mercado cervejeiro brasileiro.

Desde a Europa, como tem acompanhado as questões envolvendo o segmento cervejeiro no Brasil?

Infelizmente, no Brasil chegamos à fase do desespero. Há muita gente se aventurando no mercado sem um mínimo de experiência, tanto em cervejaria quanto na docência. Há uma profusão de novas cervejarias com produtos abaixo da crítica. Torço para que uma seleção natural ocorra rapidamente, deixando vivos apenas aqueles que estudam mais e têm bons produtos e serviços a ofertar. Só assim avançaremos de fato.

Se tivesse que escolher uma cerveja para fazer um brinde com os leitores, qual seria sua opção hoje?

Uma Doppio Malto Cocoa IPA, colaborativa com a brasileira Bodebrown, e que leva cacau brasileiro na receita. Deliciosa!

Fotos: Ronei Thezolin e Divulgação

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