Vinho do padre, vinho canônico, vinho litúrgico, vinho de altar, vinho da consagração… Certamente você já sabe que estou falando do “misterioso” vinho de missa, aquele que compõe o momento mais emblemático dos ritos católicos. Durante o culto religioso, ele é consagrado e transforma-se no “sangue de cristo”, protagonizando uma poderosa e antiquíssima simbologia da Igreja Católica. Mas, afinal, que vinho é esse?
Vamos chamá-lo aqui de “vinho canônico”. Há muita fantasia em torno dessa bebida. Eu mesma já ouvi várias. Há quem imagina tratar-se de um néctar especialíssimo reservado apenas aos sacerdotes. Outros citam intensos trabalhos de monges enclausurados em mosteiros, que teriam a função de elaborar o vinho e enviar a paróquias mundo afora. Não faltam ainda fábulas que vaticinam castigos infinitos a excomungados que se atrevem a provar a bebida sagrada, num crime de profanação.
Pois, pasmem, fiéis! Esse líquido, tecnicamente, não tem nada de extraordinário. Aliás, a literatura cristã dedica poucas linhas à bebida. O principal texto está no Direito Canônico (Cânone 924) e não vai muito além do que está reproduzido aqui: “Que o vinho seja natural, do fruto da videira, genuíno, não alterado, nem misturado com substâncias estranhas. Na mesma cerimônia da missa se mistura ao vinho uma pequena quantidade de água (…). Não se admita, depois, sob nenhum pretexto, preferir usar outras bebidas de qualquer gênero que seja, que não constituem matéria válida.”
O vinho, está escrito, é obrigatório, salvo em situações em que o sacerdote tenha alguma restrição médica para bebidas alcóolicas, como problemas hepáticos e/ou alcoolismo. Nestes casos, é permitido o uso de suco de uva ou de vinhos sem álcool (sim, existe, o mais conhecido é da marca La Dorni). Também não há descritores únicos para o vinho canônico, embora a maioria seja doce fortificado, pois estes resistem por mais tempo depois da garrafa aberta – considerando que apenas 35 ml são utilizados no rito litúrgico, enquanto as garrafas contêm 500 ml e 750 ml. O uso de conservantes é permitido, desde que não interfira na natureza da bebida. Os brancos e rosados, embora menos comuns que os tintos, também podem ser utilizados.
No Brasil, a vinícola Salton é a principal fornecedora de vinhos canônicos (300 mil garrafas ao ano), mas outras marcas também abastecem esse mercado, entre elas a Aliança e a Chesini, do Rio Grande do Sul. O produto da Salton é um rosado licoroso, corte de moscatel (50%), Saint-Emilion (40%) e Isabel (10%). Só para constar, em sua visita ao Brasil, o Papa Francisco foi recepcionado com Salton Talento 2007, o branco RAR Viognier e o Lote 43 da Miolo – afinal, ele também é filho de Deus e merecia uma amostra nobre da produção nacional. Mas na missa, prevaleceu o Canônico Salton.
Outro mito em relação ao vinho canônico diz que a bebida é exclusiva da igreja e são raros os que têm o privilégio de prová-lo sem fazer parte da hierarquia católica. Na real, esses vinhos são vendidos em lojinhas de souvenires ligadas a paróquias e a mosteiros e em sites das próprias vinícolas ou de lojas especializadas em vinho. Custam menos de R$ 50.
É PECADO CONFUNDIR OS VINHOS
Agora que já sabemos como é o vinho canônico, vamos colocar os pingos nos “is” sobre outros dois vinhos que costumam confundir os desavisados por estarem, de alguma maneira, associados à Igreja Católica, seja no nome, na tradição, no berço italiano ou na lenda que os envolves. São eles: Vin Santo e Lacryma Christi. Aqui vai um resumo bem sucinto de cada um deles, que é para ninguém cometer o pecado de trocar as taças na Semana Santa.
_ VIN SANTO: é aquele vinho de sobremesa delicioso que os italianos tomam molhando biscoitinhos de amêndoas na taça, numa das tradições mais fortes da Páscoa local. Produzido na região central da “bota”, especialmente Umbria e Toscana, é feito com uvas passificadas. O processo é bem artesanal. As uvas são colhidas e acomodadas em esteiras para desidratar por um período de até seis meses. Depois disso, as uvas são prensadas e transferidas para barris de carvalho ou de castanheira para virar vinho. A fermentação é de longo prazo, podendo chegar a quatro anos. Os Vin Santo brancos são elaborados com as uvas malvasia bianca e trebbiano. Para os tintos, utiliza-se a sangiovese.
_ LACRYMA CHRISTI: o nome é esse mesmo que você traduziu – lágrima de Cristo. Diz a lenda que Lúcifer, ao ser expulso do paraíso, resolveu morar no Monte Vesúvio. De lá passou a devastar tudo a sua volta. Jesus, contrariado, começou a chorar. As lágrimas se misturaram com as lavas do vulcão e, aí, nasceram os vinhedos que fornecem as uvas para os Lacryma Christi. Histórias a parte, trata-se de um vinho branco e seco muito antigo, conhecido desde a Idade Média. Uma curiosidade: o produtor Feudi Di San Gregorio, da região da Campania, tem um método bastante original para conferir elegância ao seu Lacryma Christi Rosso. Os vinhos descansam nas adegas ao som de canto gregoriano. Será que faz efeito? Sei lá! Mas, com certeza, eu passaria horas nessa adega.
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