Naquela manhã comum de todos os dias, as portas de aço da loja se abriram como que sendo as repetitivas pálpebras das vitrines. Se ergueram, ficaram suspensas e alertas como olhos bem despertos e assim encararariam o dia.
Isso acontecia sempre, menos aos domingos em que a loja de fantasias se fechava. Naquele dia foi diferente, alguém via, sem ninguém saber, nunca se soube se viu antes, mas não importa, neste dia “ela” via o começar do dia, o comércio, o aquecimento do trânsito, as primeiras pessoas em movimento…
Sentiu uma enorme vontade de se mover, de transcender, transpor-se daquela vitrine, seu aquário, sua jaula, redoma de vidro. Imaginou-se ali, saindo da vitrine e atravessando-a como uma placenta que se estica e rompe… então ela escaparia, daria passos inseguros com seus pés tão sólidos.
Talvez tivesse sido árvore um dia, deduzia que sua constituição rígida, que causava inveja nas mulheres possivelmente flácidas, provavelmente não tinha nada, quase nada, coisa nenhuma de madeira, alguma matéria hibrida de compensados e etc, etc…
Sentiria vergonha de exibir naquele dia sua cabeça nua entre tantas mulheres a dedilharem em câmera lenta os nem sempre sedosos cabelos, mas ela não poderia, teria que ser rápida em seus passos descalços de madeira, pois se parasse poderia criar raiz. Todos olhariam para a mulher careca, não tanto pelo crânio pelado já que hoje em dia tantas mulheres assumem a falta de cabelos sem disfarces, mas a fantasia que cobria seu corpo, esta sim, causaria alarde.
Mesmo assim sonhou, atravessou, rapidamente, não olhou muito a sua volta, assim ficaria mais fácil passar desapercebida, chegou do outro lado onde havia o mercado, viu os peixes nas bancadas da peixaria na área externa, mesmo com tal fedor tudo lhe pareceu tão vivo e tão agradável. Depois adentrou o prédio antigo e histórico, sentiu o aroma das especiarias, das cachaças, dos queijos, dos vinhos, do café. Sentiu o mistério da loja de artigos religiosos, com seus incensos, defumadores, raízes, ervas… nos açougues as carnes, eram tantas… nos empórios os grãos a escorrerem pelos dedos…
Havia em apenas uma volta aspirado o dia através de suas narinas amadeiradas e ilustrado suas retinas/vitrines tão amadeiradas quanto, porem cheias de sonhos de peroba, pinho, jatobá, igarapera, cabriúva, mogno, pinho…
Logo seu sonho se esvaiu, quando percebeu que os peixes estavam mortos fora de suas águas, as ervas haviam sido arrancadas da terra, as carnes dos corpos de bichos vivos até dado momento…
Ela não, ela era talvez de uma madeira desconhecida, descompensada que imitava um ser humano, não deixaria de respirar como os peixes, não sentiria a dor nas carnes, estava ali vestindo uma fantasia, vendendo ilusões ínfimas e voláteis em seu sorriso fugidio. Uma festa na qual nunca iria, nem chegaria perto, tão pouco retornaria…
Só veria as pessoas fazendo planos, decidindo e levando as ilusões para casa em sacolas plásticas.
Logo duas mãos a despiram e a fragmentaram em partes a ponto de sua cabeça sobre seu busto poder admirar suas esguias coxas distantes, e ela caiu em si, seu corpo foi exibido na rua para todos e logo foi reintegrada e fantasiada novamente.
Então com o decorrer do dia as pálpebras de aço desceram e “ela” ficou ali no escuro com as amigas caladas, inertes, se convenceu que ali estaria protegida dos seres chamados de humanos. Então ficaria ali bem quieta em sua redoma esperando que do mercado viesse um príncipe truculento cheio de cheiros e aromas e a levasse pra sua casa e então despertaria em um beijo e ele cobriria sua cabeça com uma bela peruca de madeixas generosas e sintéticas.
Um dia então poderia adentrar uma loja de fantasias e comprar ou alugar sonhos como todo bom e mau ser humano. O tempo que isso levaria não lhe causava rugas de preocupação.
Só poderia concluir uma coisa em seus humildes sonhos ingenuamente amadeirados, “ela” ainda que naquele estado em que vivia era menos artificial do que aqueles seres os quais via passar em passos rápidos e lentos pela rua.
Não via a hora que amanhecesse e pudesse sonhar com o mercado novamente, pouco importaria a fantasia que colocariam em seu corpo, isso nada mais significava.
Inaugurado em 1908 pelo prefeito Orosimbo Maia, o Mercado ocupa um prédio projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo em arquitetura tipo mourisca.
Tombado em 1983 pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo e em 1995 pelo CONDEPACC – Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural de Campinas, é hoje administrado pela SETEC Serviços Técnicos Gerais, autarquia da Prefeitura de Campinas.
Para saber mais sobre o mercado entre no link abaixo:
http://www.setec.sp.gov.br/solo-publico/mercado-municipal/
Newsletter:
© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74