Liquidificultura

As Teatrais – “Livros, Amor e Acarajé”

por César Póvero
Publicado em 17 de setembro de 2015

Numa ladeira de Salvador alguns foliões retardatários cantam “Milagres do Povo” de Caetano Veloso. – Quem é ateu, e viu milagres como eu…

Logo se avista na escadaria a “Mãe”, (vestida como uma matriarca escritora feminista sob um amplo chapéu  que discute com a personagem a quem me refiro como “Irmã”, vestida de maneira andrógina, porém não estereotipada, é lésbica. Uma de suas duas filhas).

Mãe – Há essa hora, tua irmã já deveria ter nos ligado, desgosto!A desgraça esta feita!

Irmã – Pobre coitada, se casou sem a presença da Mãe e da irmã, ninguém merece.

Mãe – E por que tu não veio? Pra tentar preencher minha lacuna?

Irmã – Você ta cada vez mais louca, “mainha”. Você me proibiu, lembra-se? Me ameaçou que enfartaria!

Mãe – Me respeite hein, menina!(…) Não me lembro de nadinha! Será que ela já disse sim para aquele estrupício?

Irmã – Liga no celular dela!

Mãe – Pelo horário, acho que a cerimônia já se foi, a desgraça já está consumada, mas vai que atrasou e pego ela bem na hora do “fale agora ou se cale pra sempre”. As portas estão fechadas, um silêncio.

Irmã – Mãe, você parece que bebe.

Mãe – Me respeite hein, menina!

Irmã – Mãe, você acha que ela vai estar vestida de noiva, parecendo um bolo, com buquê na mão e de celular? Aonde ela ia por o celular, Mãe?

Mãe – Não me faça essas perguntas esquisitas, já sei, vou ligar na igreja. (Tira da bolsa um celular e tecla alguns números) Uma Mãe prevenida vale por várias. Que, que é isso, se quiser falar com a sacristia, disque um. Se quiser falar com a portaria, disque dois. Se quiser agendar uma missa, disque três. Se quiser falar com a catequese, disque quatro. Se quiser água benta, disque cinco… Inferno! Inferno! Tecnologia! Detesto falar com máquina, eu sou gente! Quero falar com gente! Computador pra mim, só pra escrever!

Noiva (chora baixinho muitos e muitos degraus acima. Ambas não notam a “Noiva”, romântica e sonhadora, literalmente vestida de noiva, a outra filha da escritora. Desce chorando a escadaria, vestida de noiva). – “Mainha”! (Abraça-a) – Maninha! (Abraça-a).

Mãe e Irmã – O que aconteceu?

Noiva – Ele me largou no meio da cerimônia, minha cara ta queimando de vergonha até agora. Ele fugiu. Me trocou!Esperei todos irem embora, fica no sacrário chorando, chorando…

Mãe e Irmã – Com quem? Diga! Com quem? Quem é ela?

Noiva – Ele, vocês querem dizer, quem é ele? Meu noivo Nivaldo… fugiu do altar com o … Padre Pedro.

Mãe – Tu, ta querendo me dizer que seu noivo Nivaldo fugiu com o Padre Pedro. Mas porque, eu não entendi, que ligação existia entre os dois?

Noiva – (Chora ainda mais).

Irmã – Mãe! Pelo amor de Deus! Você faz cada pergunta idiota, nem parece uma escritora reconhecida internacionalmente, parece uma analfabeta!

Mãe (Batendo na Irmã) – Me respeite que sô tua Mãe, infeliz! Como é que pode se dá a mesma educação pras duas, e as duas saírem tão diferente?

Noiva – Eu amava tanto ele. Me guardei pra ele! Me guardei tanto! Só eu sei o quanto.

Mãe – Pro Padre Pedro?

Noiva – Não Mãe, pro meu noivo Nivaldo, disseram que os dois tinham algo muito antigo. Ele é tão lindo!

Mãe – Quem o Padre Pedro? Como assim, tinham algo?

Irmã – Eu não vou suportar!

Mãe – Quieta, que a conversa não chegou aí!Isso quer dizer que tu continua virgem?

Noiva – Claro né, Mãe. (grita) Eu tenho culpa de ser virgem!

Mãe – Fale baixo. Morro de vergonha, se ficam sabendo que tu é virgem, ninguém mais vai olhar pra nossa cara, se sai isso no jornal, morro! Logo eu uma “feminista”de esquerda, com uma filha lacrada!

Noiva (Chorando) – Para Mãe! Você fala como se eu tivesse doente, algo contagioso!

Mãe – Pelo amor de Deus! Ainda bem que isso num pega, já pensou eu com essa idade e virgem, me mato! Num fui em teu casamento, tu sabe muito bem porque, ele é tucano, de uma família de tucanos, tudo de direita! Eu sabia que ia dar besteira!

Noiva – Eu vou matá-lo!

Mãe – Quem, o Padre Pedro?

Noiva (Chorando) – Não, Mãe. Meu noivo Nivaldo!

Mãe – Você não quis ouvir tua “mainha” não é? Se estrumbicou! Bem faz tua irmã que num quer saber de casar, tem que escolher bem.

Irmã – Mãe! Para de tapar o sol com a peneira, eu sou lésbica, você sabe muito bem disso, lésbica e de esquerda, é claro.

Mãe – Isso num vem ao caso, desde o começo eu disse. Seu noivo Nivaldo num presta, seu noivo Nivaldo num presta! Mas elas nunca ouvem a pobre Mãe. Mãe é por fora! Mãe é careta! Mãe é brega! E agora que levou um belo de um chute no traseiro, ta que não pode nem se sentar, vem chorar no colo de quem? Eu te pergunto. Da trouxa da Mãe! Eu te respondo.

Noiva – (Chora ainda mais).

Irmã – Para de torturar a pobrezinha que perdeu o noivo pro “padreco”!

Noiva – (Chora mais ainda).

Mãe – Como se choramingar adiantasse? É uma pamonhona mesmo. Eu disse: “Homem bonito, rico, inteligente, educado e solteiro”. Só faltava você achar que ele também era fiel, né? Síndrome de Cinderela! Eu disse – se faça de burra! Homem inteligente gosta de mulher burra, ainda mais ele, que é rico! Você contou pra ele que é escritora?

Noiva – Contei!Eu queria dividir com ele meus pensamentos, meus livros, eu decidi com o meu editor, não quero mais usar pseudônimo, quero ser reconhecida pelo meu trabalho. Quero ser uma escritora famosa, poder comparecer nas minhas entrevistas.

Mãe – Então faça como eu, case com um “homem burro”. O meu marido que Deus o tenha, quando foi pela primeira vez em minha casa e viu uma réplica de Monalisa na parede e me perguntou. Que santa é essa? Pobrezinho! Filhinha, fazer o que? Tem que ser como Zélia, esposa de Jorge, meu tão amado, que Deus o tenha. Zélia era toda quietinha, comportadinha só escrevia livrinho bonitinho de historinha de família, veja só quem é que quase foi tomar chá na academia, veja só quase imortal! Se for se casar de novo, por favor, case com “homem burro”! Bem rústico!Bem matuto!

Irmã – Minha namorada adora meu estilo de escrever, diz que eu sou a nova Virginia Woolf! Ela me apoia muito, e o mais importante, me ama, ela acha o máximo uma família como a nossa! Mãe e duas filhas escritoras. Claro né, “mainha”. Nós, não tão bem cotadas como a senhora. Ainda!

Mãe – Que história é essa de namorada?Fique de olho aberto com essa fulaninha pra num acabar como a Virginia Woolf com “os bolso cheinhos”de pedras e virando comida de peixe num fundo de rio, moqueca.

Noiva e Irmã – Credo “Mainha”!

Mãe – É, essa talzinha me parece bem espertinha, depois é no meu colo que tu vem chorar. Porque tu não se engraça com uma dançarina de axé ou de grupo de pagode? Ganham bem, são gostosinhas e…  (apontando pra própria cabeça) não vão te dá trabalho. Pensam só com… (Aponta a própria bunda enquanto empina) Oh! Meu Padrinho Padre Cícero! Já to vendo as manchetes amanhã no jornal. “Famosa escritora, Sebastiana Serapião – tem filha virgem abandonada no altar – por noivo baitôla”. Preciso consultar minhas fontes na imprensa, uma vez um maldito paparazzi flagrou eu e Jorge, meu tão amado, em cenas comprometedoras, já pensou se Zélia desconfia? Mas graças as minhas fontes tive os negativos e as fotos em minhas mãos.

Noiva e Irmã – “Mainha”!

Irmã (para Noiva à parte) – Ela inventa essa história! Imagine, o Jorge!

Noiva – É de casamento, a senhora entende, casou mais que a Liz Taylor.

Mãe (Bate nas duas) – Me respeitem que sou a Mãe! (…) E todos eram burros viu, todos burros, nunca leram uma linha de um livro que escrevi. Que meu Padrinho os tenha em bom lugar.

Noiva – Que absurdo! Quero um marido que me apoie no meu trabalho, que admire o que eu escrevo. Que seja meu fã!

Mãe – Apoie, vou te dizer o que é que seu noivo Nivaldo deve de tá apoiando agora.

Noiva (Chora mais) – Mãe, eu prefiro que você me atravesse com uma peixeira do que falar essas coisas monstruosas.

Mãe – Mãe sabe o que diz, e eu vou ser imortal, se meu Padre Cícero assim quiser. E vocês tomem jeito, hein! Agora preciso ir, tenho que encontrar meu novo amante, ta lá na Bahia me esperando pra uma noite de “muito” amor e muito acarajé, tá que ta, danado, é … (sussurra) um político bem famoso que foi cassado.

Irmã – Mas ele é inteligente Mãe! Ele roubou o Brasil durante anos e só há pouco tempo foi descoberto.

Mãe (Dá um beijo em cada uma) – Mas tem o rabo preso! (gargalha) Tem o rabinho bem preso (Ri)!

Noiva – “Mainha”! Você pode ficar com um homem de direita e eu não podia?

Mãe – Ele é meu amante! Amante! Marido de direita jamais e como você mesma disse, sou uma “mulher moderna” só conjugo o verbo “ficar”.  (sai rindo) Aliás, vou lançar meu novo best-seller, “O amor é que nem calango que se escafede no meio da caatinga”! Vai ser mais um sucesso! E tomem juízo, num sô eterna, já basta três escritoras numa família, que desgraça, num país que ninguém lê nem bula de remédio. E olha, basta hein, uma filha lésbica e outra virgem, basta. Ainda bem que me livrei do genro baitola.

Irmã – Que preconceito Mãe, Virginia Woolf era lésbica, tá?!

Mãe – Não inventa. Daqui a pouco vai querer me convencer que até eu sou lésbica. Fui (Sai e fica de costas ao fundo).

Irmã – Bem… eu tenho que ir encontrar a Mônica, quer vir junto, é um bar só de …

Noiva – Eu sei, já entendi, acho que não, acho que vou me isolar como as irmãs Brontë, morrer no anonimato, solteirona, tísica e virgem.

Irmã – Aí!Me tira dessa, to fora!

Noiva – Bom! Pensando bem acho que essa minha ideia ta muito piegas, acho eu vou no bar com vocês sim pra me distrair, mesmo porque acho que eu não vou olhar pra ninguém tão cedo, e lá só tem mulheres, eu não corro o menor  risco (…) Só mulher mesmo?

Irmã – Ah! O segurança! O segurança é homem, fortão, bem bonitão… Só que eu acho que não adianta, tem um cérebro de ostra. Você não vai suportar!(…) Pensando bem….

Noiva – É tudo o que eu preciso no momento! Não quero mais ver ele na minha frente, mas como diz “maínha” (imita com sotaque baiano) homem é como acarajé, caiu um no chão, já ta saindo outro mais quentinho, mais douradinho e ainda mais “gostoso”!

Irmã – E com muita pimenta!Gente! Que milagre!

Alguns foliões bêbados retornam ladeira acima e cantam “Milagres do Povo” de Caetano Veloso. – Quem é ateu, e viu milagres como eu…

 

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