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Blade Runner: por que você precisa vê-lo no cinema

por Luiz Andreghetto
Publicado em 3 de setembro de 2015

“Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo,
como lágrimas na chuva.”

 

Após trinta e três anos de seu lançamento, o clássico da ficção científica, Blade Runner, dirigido em 1982 por Ridley Scott, cujo subtítulo em português resume a premissa básica do protagonista – o caçador de androides – volta ao cinema em apenas três exibições (5, 6 e 9 de setembro) dentro da mostra “Clássicos Cinemark”. Oportunidade única para assistir uma obra que resiste ao tempo e serviu de parâmetro para vários filmes de ficção científica. Cercado de problemas em sua realização (briga de produtores com o diretor, ator insatisfeito com o personagem, narração colocada após a edição final, várias versões, etc), Blade Runner é o tipo de filme que precisa ser assistido várias vezes, em vários períodos da vida, tamanha a complexidade de sua narrativa e das reflexões filosóficas propostas. Ridley Scott havia saído do enorme sucesso de Alien, o 8º passageiro (1979) e era natural que o público esperasse que seu próximo filme seguisse essa linha: uma ficção repleta de ação e suspense, principalmente por ser estrelada por um grande astro do gênero ação/aventura, Harrison Ford, vindo de sucessos anteriores como Star Wars (1977) e Os caçadores da arca perdida (1981). Mas o que se viu na tela era um filme de ritmo contemplativo, com pouca ação e muita discussão metafísica, o que afastou o público logo após a sua estreia. Mas, com o tempo, Blade Runner mostrou a que veio e se manteve como uma obra densa, que discute questões como tempo, efemeridade da vida e a condição do humano em um mundo distópico, úmido, superpopuloso, de uma forma que, até então, não se via no universo da ficção cientifica. Se apenas o fato de termos Harrison Ford, no auge do sucesso, fazendo o caçador de replicantes Rick Deckard não é o suficiente para garantir sua ida até o cinema, segue abaixo cinco motivos para que você não perca essa obra-prima na tela grande. Aviso a quem nunca assistiu ao filme: o texto a seguir contém spoilers.

1. Versão definitiva?

Ridley Scott só teve controle artístico total sobre Blade Runner com a versão lançada em 2007 (Final Cut Edition), em comemoração ao 25º aniversário do lançamento do filme, mostrando o filme que gostaria de ter lançado em 1982. Essa fatídica versão de 1982, a primeira lançada à revelia do diretor, foi considerada confusa pelos produtores, que decidiram inserir um novo final, com uma resolução mais satisfatória, pois o original de Scott, que terminava com Deckard entrando em um elevador, deixava totalmente em aberto a história. Para isso os produtores utilizaram cenas que sobraram do filme O Iluminado (1980, direção de Stanley Kubrick) inseridas junto com uma narração quase piegas, feita às pressas.

Em 1992 Scott lançou uma versão que não foi autorizada a sua exibição nos cinemas, A Director’s Cut, com algumas mudanças significativas em relação a primeira: retirada da voz-over de Deckard, inserção de uma sequência de unicórnio e a remoção da cena final que mostrava Deckard e sua amada Rachel nas paisagens montanhosas e verdejantes das sobras de O Iluminado. Mesmo fornecendo ampla consulta a Warner, Scott não foi o responsável por criar esse corte do “diretor”. O filme ainda teve algumas versões diferentes e menos significativos: uma versão “sem cortes” para exibição internacional na época do seu lançamento, mais violenta e com mais cenas de ação do que a exibida nos Estados Unidos e a versão transmitida pela televisão dos EUA em 1986, que atenuava violência, palavrões e nudez.

2. Trilha Sonora

Feita pelo grego Vangelis, que havia ganhado o Oscar de Melhor Trilha Sonora de 1982 pelo filme Carruagens de Fogo, mostra-se como a espinha dorsal do filme. Ela define o tempo da narrativa, contribui para a decisiva ambientação da trama e nos envolve em um universo futurista de forma avassaladora. É quase simbiótica a relação entre música e imagens em um trabalho vigoroso e autoral de Vangelis, uma combinação de clima “retrô” com sintetizadores e o sax do jazzista britânico Dick Morrissey.

3. Estética cyberpunk e technoir

O termo cyberpunk surge da combinação de duas palavras: cibernética e punk, sendo que o conceito que a define orienta-se em torno desses dois outros conceitos. Cibernética é tudo relacionado aos sistemas de informação, à cultura da inteligência artificial e aos cyborgues – algo e/ou alguém que possui uma parte humana e outra parte de uma máquina (fusão homem-máquina, implante de memórias, etc). O punk foi um movimento da contracultura dos anos 70, surgido inicialmente na Inglaterra que priorizava a individualidade, a subversão e a recusa sistemática de qualquer tipo de autoridade e ordem. Esse estilo cyberpunk está envolto em Blade Runner de um futuro irreal e caótico no qual a tecnologia controla e subjuga o homem em uma sociedade que perdeu sua identidade e sua humanidade em prol do tecnológico.

Todo o visual futurista-retrô de Blade Runner é inspirado nos filmes noir da década de 40/50 que, posteriormente, viria a ser chamado de technoir, uma mistura de tecnologia com a estética do estilo noir (filmes de detetive, geralmente pessimistas, repleto de luz e sombra, com um personagem principal cínico que oscila em atitudes dúbias pela paixão por uma mulher que pode colocá-lo em uma grande enrascada), nos quadrinhos de ficção franceses (especialmente a revista Metal Hurlant) e em outro clássico da ficção científica, Metrópolis (1929), de Fritz Lang.

4. Visionário

Futuro distópico de alta tecnologia a serviço de uma sociedade globalizada em um mundo quase desnaturalizado (ruas sujas, cheias de fumaça, falta de luz natural), com uma identidade confusa devido ao extremismo dessa globalização. Scott é quase visionário ao colocar a Los Angeles futurista de Blade Runner e a sociedade como um todo repleta de asiáticos e latinos, antecipando de modo quase alegórico a influencia e a conquista desses grupos étnicos no mercado mundial. Blade Runner mostra uma cidade híbrida, na qual a invasão cultural chinesa (ou asiática) permeia toda a cultura americana. Pensar isso há 30 anos parecia apenas uma escolha aleatória, mas hoje reverbera em significados, principalmente ao pensarmos o quanto a China se tornou uma grande potência mundial.

5. Crise de identidade do protagonista

Apesar do subtítulo “o caçador de androides” na tradução brasileira, o termo correto empregado para os “seres” que o detetive Deckard precisa eliminar é replicante. Projetados para imitar os humanos, com exceção das emoções, os replicantes possuem apenas quatro anos de vida. São enviados para trabalharem nas colônias espaciais, mas os replicantes da fase Nexus 6 passam a desenvolver emoções próprias, rebelam-se e voltam à Terra. O motivo dessa volta é procurar respostas para perguntas que os atormentam: quem os criou, quando foram “ativados” (portanto saberiam até quando durariam), porque possuem uma vida tão curta, para isso infiltram-se entre os humanos.

Deckard inicia o filme com a missão de encontrar os replicantes e descobre, nesse ínterim, que a sua busca é muito maior: precisa encontrar a si mesmo. E qual seria a identidade de Deckard? Humana ou Replicante? Será que Deckard busca aquilo que ele é?

O filme insere várias pistas nessa direção. Os replicantes que fugiram e voltaram a Terra foram seis, sendo que um deles morreu na fuga. Temos quatro que são perseguidos e exterminados. E o quinto replicante? Seria Deckard? Será que a polícia sabia de tudo e o colocou para caçar seus iguais, justamente porque todo o trabalho perigoso nunca era feito por humanos?

Outros detalhes também apontam neste sentido. Em uma cena os olhos de Deckard brilham da mesma maneira que brilham os olhos de alguns replicantes. A casa dele não mostra nenhum detalhe de sua vida pessoal. Deckard sonha com unicórnios e encontra em sua porta um origami de unicórnio. Como alguém saberia de seu sonho se não havia contado a ninguém? Será que suas memórias são implantadas? Na luta final o replicante Roy questiona Deckard sobre “viver com medo” e porque ele salvaria a vida de Deckard, se não fosse por serem ambos da mesma “espécie”?

Philip K. Dick, autor do livro no qual o filme é baseado, diz que escreveu o personagem pensando em um humano, da mesma maneira que acreditam o roteirista Hampton Fancher e o ator Harrison Ford. Mas, em uma entrevista de 2002, Ridley Scott afirma que Deckard seria um replicante. Assistam e tirem suas dúvidas.

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