Doroteia vivia a decepção de seu segundo casamento desfeito, nenhum deles na igreja ou no papel, como se diz, muitos anos dedicados a cada um, sua entrega, seu amor… e desfechos decepcionantes. Da primeira união um casal de filhos, da segunda nenhum, ele nunca parecia estar maduro para querer, já o primeiro marido nunca amadureceu, mas na empolgação da juventude e o calor da paixão, eis que surgiram os filhos tão amados, os quais ela criou sozinha.
Agora Doroteia estava só novamente, ela e os filhos, na verdade sempre se sentira só, ambos os parceiros de vida nunca lhe deram o apoio necessário, ela acabava sendo pai e mãe, a que cuida da casa, trabalha pra fora e troca as lâmpadas. Queria muito um marido que trocasse lâmpadas, mas não… – o último deles sempre dizia – amanhã eu troco e esse dia nunca acontecia.
Depois de tudo isso em sua nova fase de vida, decidiu mudar para um apartamento maior, sairia daquele com ambientes pequenos e de dois quartos, próximo a Avenida Francisco José de Camargo Andrade, perto da igreja Igreja do Rosário, uma réplica da que havia no centro de Campinas até 1956, demolida em nome do progresso. Que progresso? Enfim…
Logo achou um com três quartos bem ali na Avenida Andrade Neves próximo a Torre do Castelo, e o casal de filhos não teria mais que dividir o mesmo quarto. Iniciou a busca incansável até encontrar o apartamento perfeito, sala dois ambientes, um corredor com os três quartos, banheiro, ampla cozinha, uma boa área de serviço com um quarto de empregada e um pequeno segundo banheiro, tudo que sempre quis.
Agitou sua mudança, encaixotar coisas, tinha um mês para entregar o seu já vendido, e enquanto isso reformaria o novo ninho. O seu futuro, lar doce lar, era habitado por uma senhora chamada de Salomé. – O nome Salomé tem origem no aramaico Shalam-zion “a paz de Sion”, que mais tarde foi abreviado para Shalamzu e depois helenizado como Salome. Tem relação também com o hebraico shalon que quer dizer “paz”, por isso é atribuído o significado de “a pacífica”.
Isso mesmo, um famoso nome bíblico bem excêntrico, esta irmã idosa já na casa dos 80, pra mais, havia perdido suas duas irmãs mais velhas, rezava a lenda que as duas que partiram se foram tão virgens quanto a que ficou, Salomé. Quem zelava por Salomé, era sua sobrinha, que não morava junto, mas se responsabilizava pela urgente mudança da idosa tia.
O material de construção foi comprado, o prazo vencendo, Doroteia tinha que entregar onde morava e Salomé não entregava o apartamento, o prazo era sempre adiado. Ficava pra depois… depois…
Doroteia, pedagoga e atriz já perdia sua paciência e teatralmente trágica, – coisa de atores – se via sem teto na rua embaixo de uma ponte, mendigando com dois filhos adolescentes em farrapos, o sonho do novo e amplo lar se desconstruía. Faltava apenas poucos dias para que ela entregasse sua moradia que ficava mais distante. Ainda tinha que aguardar a reforma.
O que mais irritava Doroteia é que Salomé mentia descaradamente e docemente. Certo dia Doroteia não acordou muito boa, acordou sutilmente má, assim meio vilã de novela das nove. Acordou meio Medeia! Ligou pra tal sobrinha da idosa que também só prometia e mandou-a levar a tia passear para que ela entrasse com o material de construção e estimulasse a ex-proprietária a retirar-se quando voltasse e se deparasse com a situação. Pegou sua chave, atravessou a portaria com os pedreiros alegando que ia entregar o material e não teve duvida, mandou os pedreiros literalmente atacarem o trono da rainha má. Quando se invade um império, a primeira coisa é atacar o trono, sem dó, deu ordem aos pedreiros: – Arranquem o vaso sanitário – vulgarmente conhecida como privada. Atacou a inimiga por baixo deixando-a totalmente fragilizada.
A vida privada de Doroteia estava agora se reconstruindo e a de Salomé mudaria de vez. Sim muito difícil uma idosa que morava ali há décadas, no que parecia mais um mausoléu, aceitar mudar tão fácil, mas era um contrato firmado por ambas as partes. Quando Salomé voltou com a sobrinha, o que era para ser uma entrega de material já se tornará um pontapé inicial de uma reforma, não havia como ficar ali. Salomé não havia mudado nada do lugar o que comprovava que mudança nenhuma havia iniciado.
Na mesma hora sem trono a antiga moradora se foi, a reforma foi feita dentro do prazo. Doroteia feliz com a reforma que tornou aquele imóvel praticamente outro, ainda vivi ali no Castelo em seu reino, logo depois encontrou seu rei, quis se casar na igreja desta vez e assim realizou seu sonho, entrar de noiva na igreja. Poucos sabem de sua labuta, mas eu sei, a história da queda do trono.
Agora Doroteia é rainha de seu mundo ao lado de seu rei, senhora de seu castelo, às vezes vai bem ali perto no alto da Torre do Castelo para ver tudo de cima do mirante infelizmente interferido por edifícios que impedem a visão completa.
Lembrando que além de pedagoga, Doroteia era atriz e sendo assim nada lhe havia custado ao encenar em prol da justiça. E lembrando Shakespeare e adaptando a frase de “Ricardo III”, relembra sua vitória orgulhosa dizendo – Meu reino por um vaso!
(Esta crônica é uma obra de ficção, qualquer semelhança com campineiras reais é mera coincidência).
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