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“Garota Exemplar” e as mentiras que contamos a nós mesmos

por Hélio Costa Júnior
Publicado em 7 de outubro de 2014

David Fincher não é um cineasta ingênuo, sabe muito bem como contar uma história e usar de ardis visuais para corroborar suas ideias. Fincher tem obsessão por vasculhar a mente de seus personagens, desnudando-os no limite de suas idiossincrasias, analisando milimetricamente o que cada um tem a nos oferecer, com certa predileção pelo lado mais sombrio dessas personalidades.

Foi assim com “Clube da Luta”, “Seven”, “Zodíaco”, “A Rede Social”, entre outros. Fincher sabe melhor do que ninguém mostrar personagens que se refletem em outros personagens. Quanto mais sabemos de Tyler Durden, o personagem de Brad Pitt em “Clube da Luta” (1999), mais conhecemos o personagem de Edward Norton. Quanto mais tentamos descobrir e acompanhar os passos do assassino do zodíaco, mais desvendamos os meandros da mente de Robert Graysmith (Jake Gyllenhaal), o jornalista responsável pelo caso em “Zodíaco” (2007). Isso apenas para ficarmos em dois exemplos.

Portanto, não seria diferente em seu décimo filme, “Garota Exemplar” (2014): temos aqui dois personagens que se completam e, quanto mais sabemos de um, mais entendemos o outro e vice-versa. Fincher encontra material perfeito para o seu cinismo cinematográfico e descrença nos relacionamentos modernos na adaptação do livro homônimo da escritora Gillian Flynn, também autora do roteiro do filme.

Amy (a extraordinária Rosamund Pike) é a garota exemplar do título, a queridinha de todos, que parece predestinada a uma vida repleta de perfeição assim como sua aparência loura e milimetricamente controlada parece nos dizer. Ao casar-se com um escritor em início de carreira, Griffin (Ben Affleck), Amy vê seu pequeno mundo de aparências desabar diante da primeira crise financeira do casal. Ela percebe o quão irremediável será essa crise ao ter que abandonar Nova York e voltar para a pequena cidade do marido, no interior do Missouri, quando a mãe dele padece de uma enfermidade. Com o falecimento da sogra, Amy se vê presa a uma vida que nem em seus piores pesadelos poderia imaginar. E, no dia do quinto aniversário de casamento do casal, Amy desaparece, deixando seu marido como o principal suspeito do crime.

Adicione a essa receita o frenesi midiático que se instaura na comunidade local e temos um quebra cabeça que aos poucos nos será desvendado, peça a peça, onde nada realmente é o que parece ser.

Esse pequeno resumo/sinopse da história jamais daria conta de todas as camadas de interpretação propostas em “Garota Exemplar”, um filme com várias reviravoltas, do qual quanto menos soubermos da história, melhor. Com dois pontos de vista (de Amy e de Griffin) bem demarcados que se alternam e se misturam com maestria no decorrer da narrativa, Fincher nos manipula de uma maneira exemplar, entregando quase “três” filmes dentro de um (o filme que vemos através de Griffin, o filme que vemos através de Amy e um terceiro filme que é aquele do qual tiramos nossas próprias conclusões).

É nessa multiplicidade de “vozes” que somos surpreendidos e enganados na narrativa, residindo aí o grande mérito do roteiro adaptado pela autora do livro e conduzido de forma minuciosa pela direção impassível de Fincher. Seria Griffin o assassino de sua esposa? Pode uma pessoa tão pacata e por vezes boçal premeditar um assassinato? Seria Amy uma garota mesmo tão exemplar? Pode a mídia monopolizar uma história ao ponto de nos fazer acreditar naquilo que queremos acreditar, sem nos preocupar com provas? São diversas perguntas que permeiam a narrativa e que aos poucos serão respondidas. 

Mesmo com todo esse cinismo relacionado à mídia, as convenções sociais, aos relacionamentos amorosos, Fincher e Flynn estão interessados em nos falar de até que ponto somos uma criação daquilo que achamos que somos e como criamos “personagens” para que as pessoas acreditem naquilo que queremos que elas acreditem. O que realmente somos? Aquilo que acreditamos ser ou aquilo que as pessoas acha que somos? Qual o valor da verdade em um mundo no qual, cada vez mais, vivemos de mentira e aparência? Fincher e Flynn sabem que somos uma sociedade governada pela imagem – imagem que criamos de nós mesmos e a imagem que criam de nós – e tiram o melhor proveito dessa constatação.

“Garota Exemplar” nos provoca nessas reflexões e nos coloca diante de um paradoxo: se o amor pode ser essa força propulsora que nos redime de uma existência sôfrega, pode esse amor ser a prisão que nos encarcera em relacionamentos tão destrutivos? Fincher transforma aqui o casamento no lugar menos seguro no qual possamos desenvolver nossa compreensão acerca daquilo que nos faz feliz.

Sem procurar respostas fáceis, tanto no livro quanto no filme, estamos diante de uma narrativa que nos mostra que, toda história, por pior que seja, sempre tem dois lados.

Veja em quais cinemas o filme está passando em Campinas.

Confira o trailer:

 

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