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“Praia do Futuro”: corpos em movimento

por Luiz Andreghetto
Publicado em 23 de maio de 2014

Se, à primeira vista, existe algo que salta aos olhos no cinema do diretor cearense Karim Ainouz é a proximidade com que ele utiliza a câmera em relação aos corpos de seus personagens. A câmera gruda em seus atores para não mais deixá-los por um segundo qualquer, perscrutando cada centímetro de seus corpos, sejam em êxtase, sejam em sofrimento. Karim acompanha vertiginosamente seus personagens que estão sempre em movimento, empreendendo uma busca que, na maioria das vezes, não sabem qual é. Nesse universo de deslocamento físico, ao qual os personagens estão submetidos, a estrada torna-se a metáfora perfeita para extrair com exatidão esse não pertencimento a lugar nenhum e/ou sentimento de estranhamento frente a uma realidade que não condiz com as necessidades internas de tais personagens.

Em seu primeiro longa-metragem, “Madame Satã” (2002), esse deslocamento dava-se em um sentido mais restrito às questões sexuais que perpassavam o personagem: um dos mais famosos travestis da cena noturna brasileira. Em “O céu de Suely” (2006), a protagonista Suely desloca-se para São Paulo; é abandonada pelo marido; retorna a sua terra natal e de lá não consegue mais sair, a não ser rifando seu corpo. Em “Viajo porque preciso, volto porque te amo” (2009), o próprio título já remete à situação de José Renato, geólogo que transforma uma viagem física aos confins do sertão em um relato emocional de saudade e vazio existencial. A Violeta de “O abismo prateado” (2011) é abandonada pelo marido e decide ir até Porto Alegre para tentar reencontrá-lo, mas não consegue escapar de “si mesma” antes de chegar ao aeroporto. Esse é o universo no qual são construídos e amalgamados os personagens do cinema de Ainouz, portanto não será diferente que em seu novo filme “Praia do Futuro” (2013), tenhamos mais um personagem em “fuga”, à procura de si mesmo ou a um sentido maior dentro de uma existência que, a principio, parece tão desprovida de encantamento.

Donato (em uma interpretação sensível do ator Wagner Moura, tentando deixar o Capitão Nascimento para trás), trabalha como salva-vidas na praia do título, no Ceará, e empenha-se pra ser o melhor dentre seus companheiros, enquanto torna-se um herói de carne e osso para o irmão mais novo (quando criança interpretado por Savio Ygor Ramos e aos 20 anos pelo extraordinário Jesuíta Barbosa). Tudo muda quando Donato não consegue salvar uma vítima de afogamento. Através desse incidente, ele conhece o alemão Konrad (ótima presença do ator Clemens Schick), com quem cria uma relação afetiva/sexual e abandona tudo para segui-lo até Berlim. Donato desloca-se não se sabe por quê. Sua busca é motivada por uma letargia de não verbalização dos sentimentos, o que ocasiona a ruptura com toda a família e em especial com o irmão que, em determinado momento da narrativa, vai até Berlim à procura das lembranças perdidas e de um acerto de contas com um passado nem tão distante assim.

Conduzido com extrema segurança por essa câmera que invade a intimidade de seus personagens, Karim opta por um relato poético, cheio de silêncios e rupturas, para nos conduzir em um cinema quase sensorial, no qual o poder de algumas imagens e/ou sequência chega a ser palpável o quanto de abandono está impregnado em cada um desses personagens.

Com tudo isso, o grande trunfo do filme ainda reside na figura de Ayrton, o irmão, que cumpre a função de um contraponto narrativo à Donato na primeira parte, insinua-se com sua ausência na segunda parte e materializa-se de forma avassaladora na terceira e última parte do longa (o filme é divido em três partes, que funcionam como capítulos da vida de Donato). Ayrton, o irmão traído e abandonado, surge para entender o sumiço do irmão, buscar alguém que ele mesmo chama de um “fantasma que fala alemão” ou alguém que “se esquece facilmente das coisas” e nesse processo, busca também entender-se como pessoa e o lugar em que ocupa nesse mundo. É Ayrton a força motriz que permeia a narrativa, é ele que transforma o irmão em herói (em um excelente uso de um personagem das HQ, o Aquaman), e que se torna o responsável por trazer de volta as lembranças de uma vida a qual Donato havia abandonado e tentado, em vão, esquecer. Ayrton é a consciência, a dor de um passado que assombra e que nunca vai deixar Donato em paz, a não ser que seja enfrentado plenamente. Essa tensão de sentimentos é ressaltada na interpretação de Wagner Moura e Jesuíta Barbosa, em especial o segundo que entra em cena com tamanha força, como se fosse uma onda de ressentimentos jorrados após anos de constrição, que nos deixa quase arrepiados, principalmente na cena do reencontro no elevador.

Com todo esse esmero na realização de seu filme, não seria para menos dizer que “Praia do Futuro” desponta como um dos melhores filmes nacionais do ano, trazendo em sua bagagem a reflexão do quanto pode ser intermitente esse diálogo que realizamos com aqueles que estão ao nosso redor e como, muitas vezes, as escolhas, por mais dolorosas que sejam, são necessárias para a construção de uma parte daquilo que nos move.

 

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