Consoantes Reticentes…

Paulinho e a fictícia história de uma vida real

por Marcelo Sguassábia
Publicado em 26 de abril de 2011

Para Paulinho, sua vida estava perdida. Dentro de alguns dias, entraria oficialmente nas estatísticas do desemprego no Brasil, tendo de passar pelo perrengue que mais temia: a dependência financeira dos pais. Desde a saída das asas da mãe, anos antes, passou a considerar como convicção o fato de ter de se sustentar sozinho na cidade grande. Qualquer situação que contradissesse essa realidade faria com que aquele pós-adolescente que teimava em refutar a idade adulta, mesmo com seu nível de maturidade acima do normal, perdesse o fio condutor que o trazia até ali; caísse na ribanceira que circundava sua zona de conforto; causasse um penoso conflito de egos e uma estafante culpa gerada pelo orgulho gigantesco que possuía. O cotidiano regrado e sistematicamente planejado do virginiano seria afetado pela inconstância do ócio (pecado mortal para Paulinho).

Enquanto o inferno não chega, todas as preocupações passam pela sua cabeça: desde como irá administrar seus dias entre as tarefas da faculdade (que exige cada vez mais dele, principalmente por ser formando) e a instabilidade emocional provocada pela falta de rumo, até como irá controlar sua reserva financeira, fazendo com que o poço não seque antes de encontrar uma nova fonte de abastecimento.

Certa tarde Paulinho decidiu assistir um filme que desde o ano anterior o havia instigado. Trata-se de "72 Horas", produção que sucede “Crash – No Limite” na filmografia do diretor/ roteirista Paul Haggis e conta a história do professor universitário John Brennan (Russel Crowe) e suas mirabolantes estratégias para tirar Lara (Elizabeth Banks), sua esposa, da cadeia, após sua inesperada prisão pela denúncia do assassinato de sua patroa. Sem provas concretas de sua inocência, John tenta freneticamente todo tipo de apelação jurídica, até que se dá conta de que, pelas vias legais, não conseguirá livrar a amada de trás das grades e reunir novamente sua família. É aí que o bom moço decide usar de saídas escusas para fugir com Lara da penitenciária antes que ela seja transferida para uma prisão de segurança máxima (o que vai acontecer em 3 dias [72 horas], motivo do título do filme).

Para tal feito, nenhum pudor faz parte da conduta de Brennan: desde coragem para matar, assaltar, arrombar, até sangue frio para despistar todos os policiais do estado que cercam as rodovias, aeroportos, estações de trem etc, todos os métodos pilantras fazem parte de sua conduta fora-da-lei. O suspense criado por Haggis ultrapassa os limites da história em si. O espectador se envolve com a crença do protagonista na inocência da mulher e na vontade intransponível de que Lara realmente não seja culpada. Vontade essa que pode ser traduzida como amor, ou simplesmente obsessão. O que importa é que o esforço não é medido para que seu objetivo seja alcançado.

Logo após a exibição, Paulinho, como de costume, ligou o rádio relógio instalado em cima do armário do banheiro na única emissora que se presta a ouvir para embalar seus banhos. Trata-se de uma frequência que só toca músicas nacionais (paixão do garoto), alternando canções da nova geração com alguns hits do passado. Assim que sintonizou a tal rádio, ouviu, dos versos falecidos de Cássia Eller, o trecho “Se lembra quando a gente/ Chegou um dia a acreditar/ Que tudo era pra sempre sem saber/ Que o pra sempre sempre acaba”. Ele sabia que o que tinha acabado de ouvir queria dizer algo pra ele, queria que alguma lição fosse tirada daquele momento. Sem entender bem o que tinha acontecido, Paulinho se esgueirou pelo cubículo que teima em chamar de banheiro (é o que a curta grana pode pagar) e foi se arrumar para a faculdade.

Como que um estalo, Paulinho se deu conta de que sua nova e arruinada situação de vida (perda do emprego, instabilidade financeira e emocional, pressão universitária) foi traduzida para ele naquela tarde pela arte. A música havia acabado de amenizar o sofrimento por ele ter de se afastar de algo que durante tanto tempo o fez feliz e que ele achava difícil que um dia pudesse chegar ao fim, enquanto o cinema havia aberto seus olhos para o futuro, apontando a necessidade da coragem e persistência (é claro que não nos moldes ilegais de Brennan em "72 Horas") para superar a fase que teria início em breve.

Paulinho sempre foi muito cultural, nunca teve vergonha em admitir que o grau de sensibilidade que possuía para compreender as criações artísticas era maior e mais apurado que o das outras pessoas. Acreditava que, além de entretenimento, a arte tinha um papel fundamental na formação de conhecimento e no desenvolvimento do ser humano. Sem aspirações místicas, ou muito menos sobrenaturais (já que Paulinho é uma das pessoas mais céticas já encontradas) o jovem dialogava com a arte e acreditava que, naquela tarde, o filme visto e a canção ouvida estavam ali, naquela hora e lugar, porque ele precisava de algum apoio para se segurar. Ou será que foram obras do acaso, e que ele, por estar naquela fase complicada, tiraria alguma lição até do Lagoa Azul seguido por Atirei o Pau no Gato?

Paulinho preferiu ficar na dúvida. Se tiraria lições de outros produtos culturais até que sua felicidade voltasse ao grau satisfatório, ninguém podia dizer, mas de uma coisa ele tinha certeza: ele seria tão corajoso quanto John Brennan e tão realista quanto Cássia Eller para passar pelo futuro incerto.

Compartilhe

Newsletter:

© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74