Consoantes Reticentes…

Brothers

por Marcelo Sguassábia
Publicado em 14 de maio de 2011

– Não há mais nada a ser feito. Já tentamos todos os recursos imagináveis. Esgotamos as possibilidades de um acordo amigável e na forma da lei. Eu estou jogando a toalha, sinceramente. Minha última esperança era aquele suposto álibi, que já não vale mais nada. Investiguei e descobri que o cara está na Espanha, o porteiro não viu entrar ninguém estranho no seu prédio aquela noite e numa improvável acareação vai ficar a sua palavra contra a dele.

– Você não pode desistir agora, nem a pau que você vai me deixar na mão. Não nessa altura do campeonato. Eu te conheço melhor que você mesmo, e sei que não pegaria a causa se não tivesse certeza de ganhar de cara, em primeira instância. Se o problema for dinheiro, vamos resolver isso agora. Diga quanto a mais.

– Se me conhecesse mesmo, saberia como me ofende falando isso. Como disse, quero equacionar tudo como manda o figurino. E isso inclui o meu modus operandi nessa pendenga. Aliás, é bom deixar claro que eu só me meti nesse embrulho pela nossa amizade.

– Bom, já vi que o buraco é mais embaixo. Sei da sua retidão de caráter, isso é inquestionável.

– E insubornável.

– Claro, principalmente insubornável. Você teve a quem puxar, seu velho era o maior ficha limpa da Via Láctea.

– Pois então. Ontem mesmo antes de pegar no sono eu estava lendo o salmo 91 e pude escutar papai ao meu lado, me aconselhando a abandonar a coisa de imediato, no pé em que está. Ficamos assim, eu te devolvo o adiantamento do serviço, a amizade continua a mesma e vamos fazer de conta que não aconteceu nada. Nada.

– Eu até aceitaria se soubesse que alguém mais nesse mundo poderia me defender nessa história. Só que esse cara não existe, tem que ser você e todo homem tem seu preço, meu velho. Ainda que esse preço não seja em dinheiro.

– Tá querendo dizer o que com isso, exatamente?

– Que o seu preço tá lá no seu passado, e ninguém é ou foi Madre Teresa 24 horas por dia. Tá me entendendo ou quer que eu desenhe?

– Espera aí, nem me passa pela cabeça que você se atreva a mexer nisso.

– Pois é, nem eu me animo muito a revirar essa sujeirada toda que você varreu pra debaixo do tapete. Mas, se não tiver outro jeito…

– O que passou, passou. E eu tenho certeza de que não deixei rasto nenhum, por isso pode ir descartando a possibilidade de chantagem. E tem outra: eu mudei, o mundo deu muita volta e mesmo que você levantasse agora esse delito ele já pres…

– Não prescreveu, não. O que eu tenho na manga faz reabrir o caso, tranquilamente, mesmo com tantos carnavais passados. Aliás, o episódio rolou no carnaval, lembra? Que ano foi, 82, 83? Mas enfim, é toma lá, dá cá. Uma mão lava a outra, meu irmão. Meu irmãozinho de sangue. Sim, porque não é só dessa história antiga que eu estou falando. O seu velho não era tão ficha limpa assim, brother.

– Não envolve o coitado do meu pai nessa merda!

– Então lá vai, na bucha: a gente é irmão, meu camarada.

– Ah, tá bom… a sua mãe com o meu pai?

– O nosso pai com a minha mãe.

– Brincou.

– É, eu sei que é muito pra um dia só. Vai pra casa e dá uma revirada nas suas fotos, descubra semelhanças, deixa caírem as fichas todas. Calmamente, eu não tenho pressa. Se preferir ficar por aqui, pode ir lá no meu quarto e abra a terceira gaveta da cômoda. Meu irmãozinho vai rever algumas das suas roupas velhas, que o seu santo papai dizia que ia doar pro orfanato. Bom, tô de saída. Mais tarde conversamos. Tem uísque no barzinho e gelo no freezer.

 

 

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.

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