Pensar Psicanalítico

Tá lá um corpo estendido no chão… – Ou: a banalidade do mal

por Vagner Couto
Publicado em 31 de outubro de 2025

Em 1975, exatamente 50 anos antes, João Bosco gravou a música “De Frente Pro Crime”, sintetizando num verso um estado de calamidade normalizado pela humanidade que constituímos: “Tá lá o corpo estendido no chão/ Em vez de rosto, uma foto de um gol/ Em vez de reza, uma praga de alguém/ E um silêncio servindo de amém…”

 Estamos precisamos de muitos silêncios pra tantos améns, tantos são os corpos estendidos no chão dos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte do Rio de janeiro, perto da Serra da Misericórdia, onde, de misericórdia, não houve nada. Em lugar disso, a barbárie.

Me causa espanto a precariedade absoluta de nossas pretensões de sociedade civilizada, a incapacidade de nossa humanidade. Não dá pra achar que é normal, desejável ou esperado o que aconteceu, e que é assim que uma sociedade faz pra resolver seja lá o que for, por mais ordem que seja que estejamos necessitando – e estamos. O que vejo é uma nação se afogando no raso, na superfície das coisas, prostrada ante sua própria pequenez.

 

Não foram só mocinhos e bandidos que morreram nesse faroeste caboclo dos últimos dias. Morreram, também, os “colaterais” e, junto disso tudo, morre também a dignidade de uma nação.

Não me consola, pra qualquer efeito, o discurso oficial de que “bandido bom é bandido morto” – um valor disseminado em larga escala na sociedade brasileira. Ou que a operação policial que invadiu a favela e resultou na morte de 121 pessoas foi um “sucesso”. Ou que o “efeito colateral” (pessoas mortas que não tinham nada a ver com essa operação) foi pequeno. E que, de “vítimas”, só tiveram os quatro policiais mortos…

Isso remexe comigo e faz com que eu me depare com o meu próprio espanto: como assim, só os policiais são vítimas? E aqueles tanto outros corpos – de bandidos ou não, de traficantes ou não, de trabalhadores ou não…? Como assim – já que, no rescaldo disso tudo, nem só os mortos, tecnicamente, são vítimas? E as mães chorosas, os pais vilipendiados, os filhos órfãos, os irmãos solitários? E a nossa civilização, a nossa sociedade, o nosso país, o nosso projeto de humanidade? Como assim?

Banalizar a morte das “pessoas comuns”, tratando-a como dano “colateral”, é o cinismo básico que nutre o surto psicótico do terrorismo de Estado, como cínica e banal é a viralização em redes sociais de muitos flyers e discursos manifestando luto somente aos policiais mortos – já vestindo asinhas de anjo ou de mãos dadas com Jesus – sem nenhuma menção às outras vítimas desse massacre.

A “banalidade do mal” é um conceito da filósofa judia Hannah Arendt, que descreve como atos terríveis podem ser cometidos por pessoas comuns que, por falta de pensamento crítico, apenas cumprem ordens sem questionar ou se responsabilizar por suas consequências. A expressão surgiu após Arendt cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, um oficial nazista que organizava a logística do genocídio. Ela o descreveu não como um monstro fanático, mas como um burocrata medíocre focado em sua carreira, que, como muitos, simplesmente obedecia às leis totalitárias e ao seu chefe, mostrando que a ambição e o cumprimento cego de deveres podem levar uma pessoa teoricamente boa, um bom cidadão, a se desprover de moralidade própria e se desumanizar.

Isso, quando em grupo, pode resultar em psicopatia coletiva, transtorno caracterizado por falta de empatia e por um padrão de violação dos direitos alheios justificado pela cultura corporativa de cumprimento da lei e da ordem. Mostrando como indivíduos-família e profissionais tecnicamente bem-preparados podem ser insuflados por intenções maliciosas e pressões profissionais que resultam, em nome do cumprimento do dever, em ações que podem ser prejudiciais à sociedade em geral. Como, por exemplo, o que aconteceu, que tem interesses e alcances manipulatórios para além das vítimas diretas que alcança.

Com tudo isso, eu volto ao que é sujeito ter acontecido na noite escura da Serra da Misericórdia: “Quatro horas da manhã/ Baixou o santo na porta-bandeira/ E a moçada resolveu/ Parar, e então/ Tá lá o corpo estendido no chão…” – sepulcro de muitos silêncios, amém.

 

COMO LIDAR COM TUDO ISSO?

Psicanálise, terapia, autoconhecimento – algo assim. Para falar particularmente com o autor, use: 19 99760 0201 [zap] ou vagnercouto1@gmail.com

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