Da Janela

Uma certa nespereira

por Wanderley e Gloria
Publicado em 10 de junho de 2023

Por Gloria Cavaggioni

Gosto demais de conhecer lugares diferentes, experimentar as iguarias locais e sou gamada em sotaques. Mas verdade seja dita, costumo, mesmo que inconscientemente, associar o que vejo com fatos, pessoas ou lugares que fazem parte do meu repertório particular, muitas vezes com os arquivos gerados na minha infância. Esse comportamento fica patente lendo o que escrevo. Falo de algo e logo em seguida lá vêm minhas reminiscências… é batata!

Erico Verissimo dizia que tinha um computadorzinho interno que armazenava os dados obtidos durante a vida e quando escrevia essas informações vinham à mente de maneira natural, fornecidas pelo mesmo computador. O Rio Grande do Sul, suas paisagens, gentes e costumes fazem parte da obra do escritor gaúcho. A trilogia O Tempo e o Vento conta a história da formação do Rio Grande por meio da narrativa de vida da família Terra Cambará.

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É bastante conhecida a frase de Tolstoi que diz: “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Erico fez isso e cativou um imenso público desenhando seu chão com maestria. Personagens, lugares e fatos ocorridos em Cruz Alta, a cidade em que nasceu, coexistem com a ficção em seus romances. Na leitura de seus escritos é nossa vez de fazermos a relação do enredo com nossas próprias experiências pessoais e nos identificar com o autor.

A leitura das memórias de Erico (Solo de Clarineta), principalmente do primeiro volume, criou um vínculo forte entre o menino nascido em Cruz Alta em 1905 e essa piracicabana de 1970. Vidrada nas histórias do Erico criança cheguei à casa de sua infância em Cruz Alta, hoje um museu dedicado ao autor, doida pra ver a nespereira que fica no pátio – para nós paulistas, o quintal.

Essa árvore, companheira do romancista durante a infância e a adolescência dá nome a um capítulo do primeiro volume de Solo de Clarineta. Ela conduziu as viagens do menino a partir das preciosas gravuras dos livros e revistas importadas quando ele ainda não sabia ler. Anos depois seguiu atenta sua leitura durante a epidemia da gripe espanhola: Eça de Queiroz, José de Alencar, Dostoiévski, Tolstói, Walter Scott e Émile Zola. Prestativa, desempenhou diversos papéis – cavalo, avião, tenda, submarino… Foi palco para as histórias mirabolantes contadas por Estevão, filho da cozinheira da vizinha.

Por que cargas d’água nutrir um interesse tão grande por uma velha árvore? Como não poderia deixar de ser, lá vêm os quintais da minha infância. Também tive nespereiras. No plural porque foram três. Uma era a goiabeira na casa da Nona, outra um pé de jasmim amarelo que formava uma caverna verde logo na entrada da nossa casa e ainda uma jabuticabeira no nosso quintal, plantada por nosso avô materno antes mesmo de eu e meu irmão mais velho nascermos.

A Nona não era nossa avó, como o apelido sugere, mas era a avó dos nossos companheiros de brincadeira. Nos anos 70 nosso bairro era bastante rural e não tínhamos vizinhos. Nossa chácara ficava entre duas estreitas ruas de terra pouco povoadas. Para nossa sorte moravam, em outra casa, mas no mesmo terreno o Seo Nelson e a Tata com os dois filhos, Marcos e Marcelo. Contratados como caseiros, Seo Nelson e Tata foram na verdade amigos dedicados de meus pais e os meninos nossos parceiros de infância.

Pois bem, a Nona era a mãe do Seo Nelson, uma descendente de italianos que passou a vida na roça, no cabo da enxada, como dizia minha mãe. Trazia consigo um sotaque delicioso, um tanto caipira e um bocado italianado. Chamava as crianças levadas de mundicinhas, benzia de impinge a mau-olhado, passando por criança que demorava a dar os primeiros passos sozinha e fazia polentas lisinhas. Morava numa chácara relativamente perto da nossa e o terreiro de areia sempre muito bem varrido era o cenário perfeito para reinarmos, como a Nona dizia com fingida braveza.

Nesse terreiro ficava a goiabeira da Nona, nossa nespereira. Passávamos longos períodos em cima dela, comendo lá de cima mesmo as goiabas madurinhas. Se eram bichadas? Provavelmente, o que não impedia que fossem disputadas e devoradas. A Nona tinha um pomar com ponhema (aquelas jabuticabas grandes e bicudinhas), mixirica bodinho, limão galego, manga espada, coquinho e coração de boi, além de várias outras frutas. Tinha também uma horta bem cuidada e um jardim sempre florido. Mas nada se comparava à nossa goiabeira.

Passados mais de quarenta anos moro na mesma chácara em que cresci. A jabuticabeira continua lá, acompanhou a infância das minhas filhas e ainda faz a alegria de meus netinhos. Não é incomum encontrar amigos e eles perguntarem por ela em vez de se interessarem em saber como vou. Não me ofendo, ela é realmente cativante.

O jasmim amarelo há muito não está na entrada, o porquê não sei dizer. Meus pais, a Tata e a Nona também não estão mais aqui. Não há mais jardim, horta, pomar, terreiro ou goiabeira. Não tem mais mundicinhas reinando na areia ou comendo polenta lisinha no prato fundo e com colher. Pelo menos não nesse mundão que todos podem ver. Em mim continuam vivos, muitas vezes quietinhos em outras quase pulando pra fora.

Gloria e Emilia na Casa Museu Erico Verissimo - Cruz Alta - RSQuando estive na casa em que Erico nasceu e viveu até os 17 anos e conheci sua nespereira, me comovi. Estavam comigo o Erico menino, suas lembranças, angústias e fantasias, a goiabeira da Nona, o pé de jasmim amarelo a jabuticabeira do meu avô, a vastidão desse universo de minha infância e, para meu conforto, o Wanderley e seu afeto por mim.

Na Casa Museu Erico Verissimo conheci a Emília, a responsável pelo cotidiano do lugar. Do seu jeitinho discreto e silencioso, ela é uma apaixonada pela história do menino Erico e pela obra do Erico escritor. Provavelmente reconheceu o mesmo fascínio em mim e antes de nos despedirmos me deu como lembrança uma muda da nespereira. Foi um dos presentes mais valiosos que já recebi.

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