Por Sara Silva
Uma ausência que será profundamente sentida no Carnaval de Campinas em 2023, especialmente por nós, foliões das antigas. Depois de 26 anos de história de desfiles e quase 30 de fundação, a tradicional City Banda não sairá mais pelas ruas da cidade.
Na verdade, a decisão já tinha sido tomada pelos diretores do maior bloco de Campinas logo após o Carnaval de 2020, mas aí veio a pandemia e com ela o hiato de dois anos sem festa, e só agora ela se revela de forma mais doída para aqueles que viveram intensamente as alegrias dessa banda tão querida da cidade. Sou uma delas.
Por 1h, conversei por telefone com um dos fundadores da City Banda, o advogado José de Oliveira, de 84 anos, que permaneceu na diretoria até o fim, pra saber sobre essa decisão. São tantas coisas pra perguntar, relembrar, reviver, que o papo começa, embaralha, atravessa os anos, e ele preocupado: “eu falo demais, né?”. Então, já adianto que essa não é exatamente uma reportagem, é mais um relato de um papo delicioso sobre um tema afetivo de um período histórico da cidade. Eu queria ouvir tudo, os bastidores, os momentos épicos, os sentimentos, esse fim melancólico, pelo menos para mim, e, agora pensando, talvez essa conversa tivesse sido muito mais saborosa em uma mesa de bar, que foi justamente onde o bloco nasceu.
Como tudo começou
Foto – arquivo pessoal José de Oliveira: 1º desfile da City Banda e 1ª rainha, Maria Ester Januário
Todo mundo sabe que a City Banda foi criada em um dos templos da antiga boemia campineira, o famoso City Bar, naquele quadrilátero cheio de bares do Cambuí que ficou popularmente conhecido como “Setor”, lá pelos idos dos anos 1980 e 90. “A banda foi consequência de um período maravilhoso do ‘Setor’. Fiz parte da geração da década de 1970. O grupo se reunia mais no City Bar. O antigo proprietário, João Rodrigues, era amigo dos frequentadores, não dono de bar”, comenta saudoso.
A fundação da banda foi 1994. Mas Seu Zé conta que, antes, outro bloco, o Tomá na Banda, já tinha nascido pelas mãos dos amigos que viviam pelos bares. Foi em 1985, um sábado de Carnaval. Um grupo estava no Bar Ilustrada e o músico Geraldo Jorge fez uma observação do tipo: “O que estamos fazendo aqui num sábado de Carnaval tomando cerveja? Temos que fazer uma banda…”. O dono do Ilustrada, Camilo Chagas, concordou, e assim começou o Tomá na Banda, que segue até hoje.
Em 1994, relembra Zé de Oliveira, por alguma razão, Camilo avisou que o Tomá na Banda não sairia no ano seguinte. Os amigos estavam no City Bar e achavam que tinha que sair, sim, e se perguntaram: “Por que nós não fazemos uma banda aqui?” E assim ela foi criada por Tadeu Bertazzi, o jornalista Edmilson Siqueira, novamente o músico Geraldo Jorge, o também advogado Paulo Lima, além de Zé de Oliveira, mas ele acredita que tinha mais gente nessa roda. “Éramos todos amigos. Como o Tomá na Banda já saía no sábado de Carnaval, decidimos sair um sábado antes. Tivemos até uma faixa que a City Banda pedia passagem pro Tomá na Banda. E olha só: a primeira rainha da City Banda foi a Maria Ester Januário, a presidente hoje do Tomá na Banda”, comenta Seu Zé.
Para o primeiro desfile, fizeram rifas e contrataram uma banda de jazz. No primeiro ano, em 1995, eram cerca de 300 pessoas, “só famílias e amigos”, diz. No ano seguinte, mil pessoas. “Os primeiros 10 anos da banda foram tranquilos, uma festa, tinha um público que foi crescendo regularmente”, comenta o diretor fundador. Em 1996, foi criado o Largo da City Banda em frente ao City Bar e ao Centro de Convivência Cultural.
Um momento épico: Jamelão
Foto – arquivo pessoal José de Oliveira: “Estamos rindo de uma piada contada pelo Jamelão”
Entre os momentos mais memoráveis da City Banda, Seu Zé cita a presença do cantor e compositor Jamelão, ícone da cultura popular brasileira e um dos grandes nomes da Estação Primeira de Mangueira, o homenageado de 1998 do bloco, então com 84 anos. Um verdadeiro marco para nós, foliões, e também para a diretoria.
Zé de Oliveira conta que uma série de ‘coisas’ aconteceram. “Conhecer o Jamelão foi histórico, mas teve alguns incidentes”, comenta, rindo. “O empresário dele era de São Paulo, um ‘gentleman’. Na noite que Jamelão tinha que pegar o avião pra São Paulo, ele saiu do ensaio da Mangueira (foi o ano que a escola ganhou homenageando Chico Buarque), só que pegou fogo no aeroporto Santos Dumont. Ele teve que ser levado para o Galeão, um transtorno. Aí ele chega em São Paulo, o empresário traz ele para Campinas, tínhamos arrumado um hotel só pra ele descansar, estavam esperando. Ele chega no maior mau humor. Estava chovendo em Campinas, a roupa que ele ia usar não tinha vindo, porque a mala tinha ido para o Rio Grande do Sul, estava com a roupa do corpo. Aí tínhamos marcado entrevista. De repente alguém se refere a ele como ‘puxador de samba’. Ele ficou p…. Não quis dar mais entrevista. ‘Sou cantor de samba, não sou puxador'”, relembra Seu Zé.
Aí, os diretores, que já estavam com o cachê em mãos, quiseram logo acertar as contas pra não ter problema. “Fomos pro City Bar. Em cima do caminhão, ele fala: ‘José, dá pra você me arrumar um whiskinho? Não deixe colocar gelo…’. Dois goles depois, ele olhou e começou a rir, mudou o temperamento. Foi muito engraçado. A chuva amenizou e foi uma festa”, recorda o carnavalesco, comentando que ele observava os músicos, orientava e era ligado em tudo.
E tem mais: “O empresário tinha colocado ponte de safena recentemente e falei pra ir descansar, que cuidaríamos do Jamelão. E cuidamos. Depois que ele cantou, quis acompanhar a banda… E dormiu. No final, elogiou e agradeceu: ‘Sua banda é linda, foi muito bom. Cheguei de mau humor, mas o povo é sensacional, veio na chuva pra me ouvir. É a primeira vez na vida que recebo cachê antes de cantar.'”
O fim e essa coisa de Carnaval que alegra a gente
O fato é que a City Banda foi crescendo, crescendo, chegando a uma média de 10, 12 mil pessoas pelas ruas estreitas do Cambuí. Entre as razões do aumento de público, Zé de Oliveira aponta as festas e reuniões com grupos ‘fechados’ que se organizavam para sair na banda. Por um tempo, entre 2007 e 2014, a concentração mudou de lugar, e foi para a Rua Guilherme da Silva, entre os clubes Regatas e Tênis, que também não comportou a multidão. Voltou em 2015 para o Largo da City Banda e o Centro de Convivência, quando já eram cerca de 20 mil foliões.
Em 2016, com o tradicional trio elétrico com bandas e uma bateria com 50 percussionistas, o percurso chegou a ser encurtado porque, com o aumento de público, o tempo para a banda completar o percurso também estava se esticando. E foi justamente neste ano que houve um tumulto no Cambuí, que ocorreu horas depois que o desfile já tinha acabado.
“A partir de 2015 começaram a surgir os problemas. A nossa responsabilidade diante dos órgãos públicos era encerrar 18h, e nós cumpríamos. O problema era na dispersão, depois de terminar a banda, que cresceu e também ‘arrastou’ número grande de ambulantes no entorno. Eles continuavam vendendo bebida, o que se estendia, e as pessoas continuavam bebendo. No último ano no Centro de Convivência eu já estava em casa quando soube de briga”, explicou Zé de Oliveira.
Foto: 1º desfile da City Banda no Taquaral/2017
Em 2017, depois de 22 anos no Cambuí, a City Banda foi transferida para o bairro Taquaral, com concentração na praça Arautos da Paz. Segundo Zé de Oliveira, foi uma exigência do poder público. O salto foi para 40 mil foliões. E aumentavam também as exigências e as responsabilidades. “As reuniões eram muito desgastantes, virou uma dor de cabeça”, revela o fundador.
Foto – Os diretores fundadores Paulo Lima (à esq.) e José de Oliveira (à dir.) com a rainha da Banda/Carnaval de 2019 (Arautos da Paz)
Como a diretoria já estava limitada a três diretores fundadores, o próprio Zé, Paulo Lima e Geraldo Jorge, e a idade foi chegando, em 2018 já cogitavam parar. A mudança de local também já tinha ‘quebrado’ a disposição da diretoria. Até que a decisão veio em 2020.
Seu Zé resumiu o fim em uma resposta a um comentário em um post do Campinas.com.br no facebook sobre os desfiles em Campinas em 2023: “A City Banda não sairá mais, posso afirmar como um dos fundadores da banda. O crescimento exagerado da banda a transformou em um gigantesco problema para a Prefeitura, para a Polícia Militar, e a mudança do local para a praça Arautos da Paz também contribuiu para a sua extinção.”
No papo por telefone, revelou: “Encerrar a banda foi sofrido pra gente. A decisão foi tomada no final do Carnaval de 2020, quando pensamos em não voltar mais. Acabou sendo uma parada tranquila porque veio a pandemia na sequência.”
Mas o Carnaval continua na veia.
Morando atualmente em Arraial D’Ajuda, na Bahia, Seu Zé está atualmente de passagem por alguns meses em Campinas e pretende curtir a folia na cidade. “Quero encontrar os amigos no Tomá na Banda, quero ver o Nem Sangue Nem Areia, que foi retomado. Eu vi o original. Eu lembro quando tinha 12 anos em 1950. Minha mãe adorava Carnaval, eu adorava. Campinas tinha grandes cordões carnavalescos na época. O Nem Sangue Nem Areia era inspirado em um filme, era uma mistura de Carnaval com teatro, faziam tourada. Era um show, uma maravilha, era uma festa. O desfile na (Av. Francisco) Glicério era bonito. Acabou em meados de 1960”, conta.
E da sua City Banda, que chegou a ser o maior bloco de Carnaval de Campinas, o que fica? “Lembro que na época tinha o Gueri-Gueri {acho que era isso}, de São Paulo, que reunia umas cinco mil pessoas, e a gente brincava: ‘Será que algum dia vamos chegar a ser um Gueri-Gueri? Foi muito legal a City Banda. A gente, e o Tomá na Banda também, deu uma injeção na cidade que estava com um Carnaval quase morto. Depois de cinco, seis anos, colocamos o campineiro pra ir pra rua. Tinha muita família, muita criança. Teve gente que se conheceu na banda e casou. O que ganhei foi só alegria.”
Foto no alto: desfile da City Banda no Cambuí/2015
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