Pensar Psicanalítico

O mundo, bem pertinho de nós – Ou: como ainda não existe porto seguro contra a ignorância, o preconceito e a perversidade

por Vagner Couto
Publicado em 5 de novembro de 2022

Entre muitos e muitos casos de racismo e preconceito vicejando nesse Brasil varonil e constrangedor, reflito sobre mais um: jovens bonitos, brancos, bem vestidos e bem alimentados, investidos da prerrogativa de ser gente boa porque filhos de pais bem sucedidos economicamente, vivendo numa ilha de prosperidade no circuito Campinas-Valinhos-Jundiaí, detentores dos melhores IDH* do país, e frequentadores de um colégio de elite* (sei… – palavra meio em desuso), de gente seleta, um colégio entre os melhores dos melhores que um bom tanto de dinheiro pode pagar, estão sendo investigados pela polícia após proferirem ofensas de cunho racista contra um colega em redes sociais e em um grupo de whatsapp – em que ele foi inserido sem ter pedido ou ter sido consultado.

*(O IDH, pra quem não sabe, é uma estatística usada pela ONU comparando itens como nível de educação, saúde e renda per capita pra classificar países e cidades pelo seu grau de “desenvolvimento humano”. É nessa estatística, assim, que se destaca a citada ilha de prosperidade entre as 30 melhores cidades do Brasil pra se viver.)

Bem: são nessas cidades com alto grau de “desenvolvimento humano” que vive a maioria dos alunos que colocaram em suas redes sociais e grupo de whatsapp frases como “quero que estes nordestinos morram de sede”, “quero sua mãe, aquela negrinha”, “sou pró-reescravização do Nordeste”, “quero ver pobre se fuder ainda mais agora” e “ai, ai, como pobre é burro” – frases ilustradas por figurinhas com suástica e outras referências ao nazismo.

O jovem-alvo dos ataques tentou conversar com um dos membros do grupo após ver uma publicação com uma imagem de Hitler e os dizeres: “Se ele fez com judeus, eu faço com…”. Ao alertar o colega de que aquilo era crime, o jovem-alvo foi bloqueado. Assim, o jovem-alvo e a mãe registraram um boletim de ocorrência, já entregue à escola, que suspendeu um dos envolvidos e soltou um comunicado considerado “raso” pelos denunciantes.

O colégio, de origem alemã, é instituição tradicional, fundado em 1878. Tem como Propósito coisas como “descobrir, despertar e desenvolver os mais diversos talentos (…) para fazer um futuro melhor”. Tem como Visão coisas como “ser referência no desenvolvimento de jornadas de aprendizagem (…) para o surgimento (…) de ações e transformações inspiradoras, éticas e responsáveis”. E tem como Missão coisas como oferecer meios para que cada estudante desenvolva (…) a inteligência socioemocional… – para que tenha competência e confiança para colocar em prática ideias e projetos colaborativos que deem forma e a um amanhã melhor para todos”. É assim, então!

A mãe do jovem-alvo diz que sua filha de 13 anos já foi chamada de “escrava” no mesmo colégio – cuja direção não fez nada quanto ao caso,  pois o entenderam como “brincadeira de criança”. A mãe também diz que foi procurada pelo advogado da família de um dos adolescentes envolvidos, mas que não está aberta a nenhum tipo de negociação, nenhum acordo. Ela pensa que se uma criança, um adolescente, está compartilhando figurinhas do Hitler, isso não pode ser relativizado, pois isso fere a legislação penal, fere a constituição federal, fere os princípios universais dos direitos humanos e fere o nosso próprio humanismo. Por enquanto, ela e o filho estão sós, também feridos.

O outro lado

Em nota enviada à imprensa, a direção do colégio diz: “O (colégio…) repudia qualquer ação e ou comentários racistas contra quaisquer pessoas. Os atos de injúria racial não são justificados em nenhum contexto. Considerando que a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária pressupõe o respeito à diversidade e as liberdades, o colégio não admite nenhum tipo de hostilização, perseguição, preconceito e discriminação. Vale lembrar que em todos os campi são realizadas palestras, orientações educacionais e projetos sobre a diversidade de opinião, de raça e gênero para alunos e comunidade escolar.”

E a psicanálise com isso?

Bem… a psicanálise entende que o racimo e a aporofobia – aversão aos pobres – o que não é o caso do jovem-alvo, mas é o caso de muitos nordestinos e outros alvos do ataque dos alunos, são perversões. E a perversão, para Freud, é um desvio de comportamento integrante do tripé das psicopatologias, juntamente com a neurose e psicose. O que as define é o mecanismo de defesa diante à castração. No caso da neurose, há o recalque. No caso da psicose, a foraclusão – ou rejeição. E no caso da perversão, o desmentido. Nesse contexto, a perversão é descrita como uma defesa contra a psicose, a fragmentação do eu.

Popularmente, o termo “perversão” é mais utilizado no contexto sexual para apontar uma espécie de “depravação”, mas o sentido do termo é muito mais amplo: a perversão estrutura-se sobre uma vontade de transgredir a ordem natural das coisas, de perturbar a norma – qualquer que ela seja, sendo, ao mesmo tempo, fenômeno sexual, social, físico, político e estrutural.

Pelo exagero ou diminuição de algo, a pessoa perversa estereotipa comportamentos ou valores, que passam a ser não só desejados, mas necessários para que ela tenha prazer, e cresça, e se engrandeça, num sentido megalomaníaco.  Pela inversão de valores e dissociação, a pessoa perversa toma um “atalho” na hora de viver a sua vida. É marcadamente a ideia de desvio de conduta. Pelo compromisso com a transgressão, a pessoa perversa não está disposta a respeitar a moral, a lei, os costumes e nem nada. Em seu compromisso de transgredir, afirma ou nega aquilo que excita suas fantasias de poder e pode lhe proporcionar algum gozo.

A manipulação é um ato típico da pessoa perversa, e por isso ela manipula pessoas, ideias e fatos. Mentiras e transgressão fazem parte da sua rotina, e ela não é muito dada a sentimentos como culpa, medo ou vergonha. Mórbido, o prazer do perverso consiste em produzir angústia, dividir o outro, ver o outro sofrer. Nessa situação, o sujeito saberia o que está fazendo, mas sua relação com a lei, a norma, a moral ou a ética não ocasiona afetos inibitórios ou impeditivos à sua violência ou a atos de humilhação e intimidação com vistas à sua satisfação.

O mundo psi, com tudo isso, vê o sadismo como um transtorno de personalidade com nuances psicóticas, e entende que o sadismo não é um só, ou seja, ele se manifesta em diversas intensidades, ou graus, e em diferentes contextos, podendo atingir altos níveis de violência ou acontecer de formas mais amenas por meio de “maldades menores” contra a família, amigos, colegas ou estranhos – tipo moradores de rua, por exemplo.

Nossa realidade torturante

Dentro disso tudo encontramos a palavra bullying, que traduz um comportamento especializado na depreciação do outro, seja pertencente a uma minoria ou não. Por exemplo, os pretos, os branquelos, os gordos, os albinos, os feios, os magrelos, os altos demais, os baixos demais, os que pensam ou oram assim ou de outro jeito, enfim, os que são diferentes de qualquer padrão ou modo de ser que esteja sendo valorizado ou promovido.

O racismo, o preconceito, a discriminação e a aporofobia são baseados numa arquitetura de exclusão fundada em determinados entendimentos a respeito de diferenças sociais e biológicas existentes entre pessoas e povos. E essa arquitetura de exclusão se nutre da crença cega em determinados sistemas ideológicos, filosóficos, políticos e religiosos que consideram que diferentes etnias, sociedades e culturas devem ser classificadas como inerentemente superiores ou inferiores a outras. Mas, diante disto, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial das Organização das Nações Unidas (ONU) declara que a superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, além de não haver justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em qualquer lugar do mundo.

O que, digamos aqui, não é válido apenas enquanto Convenção: não existe base humana ou espiritual que possa validar a discriminação racial ou social, exceto aquelas fundadas na própria ignorância e preconceito mesmo, distorcidas e apartadas do valor superior que a tudo apascenta e a tudo iguala ou assemelha.

Enfim

Serão aqueles jovens alunos todos, então, no fundo, no fundo…, talvez, castrados, recalcados e rejeitados? Talvez, porque no âmbito todo das psicopatologias existem os mecanismos de defesa, e o da perversão é o desmentido. A se pensar, portanto, nessa possibilidade do desmentido, enquadrando o caso relatado, e alguns de seus personagens, como uma manifestação patológica menor, mais amena, temos apenas mais uma notícia comum nesse mundo tão farto em descompassos e distorções normalizados e assimilados como cultura e novo normal, tão antigos como a humanidade.

E, enfim, há, ainda, a esperança, porque existem possibilidades psicoterapêuticas e psiquiátricas para a lida com as diversas formas de perversão, que consistem em intensa terapia e remedinhos para desarticular os sintomas do perverso, minimizando as suas sensações de gozo e prepotência em seus delírios e fantasias de grandeza. Assim, quando o acompanhamento e o tratamento são efetivos, o quadro pode ser estabilizado e controlado.

Como lidar com tudo isso? Psicanálise, terapia, autoconhecimento – algo assim.

Para falar com o autor ou para enviar seu comentário sobre esse texto, use: 19 99760 0201 [zap] ou vagnercouto1@gmail.com

VAGNER COUTO, psicanalista, realiza seu trabalho terapêutico tendo por base uma profunda escuta empática alinhada com o uso da palavra sincera. Não ortodoxo ou sectário, tem um olhar pluralista em sua prática clínica. Assessor acadêmico do CEFAS, Escola de Psicanálise, já criou e coordenou a realização de mais de 100 eventos psicanalíticos e de saúde mental junto às principais instituições do país. Já trabalhou com pessoas como José Ângelo Gaiarsa, Marta Suplicy, Rubem Alves, Paulo Gaudêncio, Vera Lamanno e Roosevelt Cassorla. Tem profunda vivência em práticas holísticas de saúde mental em instituições como Brahma Kumaris e Fundação Peirópolis. Tem 27 anos de experiência como conselheiro em instituição dedicada ao autoconhecimento, à expansão da consciência e à espiritualidade. Poeta e escritor, é autor dos livros “Admirável momento novo” e “A estrela da manhã”. Jardineiro, ama plantar árvores e cuidar delas.

 

 

 

 

 

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